Carta do Brasil

Em agosto deste ano, @s companheir@s do coletivo libertário Letra Negra, do México, solicitaram à companheira Ilana que fizesse um artigo sobre a situação brasileira a ser publicado na revista que editam. Ilana optou por fazê-lo na forma de uma carta, estilo que, encontrado cada vez mais raramente no capitalismo contemporâneo, expressa relações mais diretas e informais entre as pessoas; relações precisamente assim como temos com @s companheir@s do Letra Negra. Resolvemos publicar esta carta na medida em que ela bem expressa o modo como, também coletivamente, temos pensado a experiência recente dos movimentos sociais autônomos no Brasil. Com essa publicação, queremos socializar essas reflexões com aquele conjunto de companheir@s ao lado dos quais temos participado dessas experiências, com o propósito de fazermos juntos um balanço sobre o seu significado – e os nossos desafios.

Fortaleza, 3 de outubro de 2000

Escrever sobre o Brasil para comp@s do México. Eis aí uma tarefa difícil, até certo ponto. É que falar de uma realidade tão singular como a brasileira, sobretudo no panorama da América Latina, é sempre algo muito perigoso. Tentar expor em pouco espaço uma realidade que mantém um fio de continuidade com tudo o que há no mundo cada vez mais igual do mercado e do Estado totais e ao mesmo tempo tentar encontrar o tom "certo", um tom lúcido e apaixonado que seja capaz de traduzir, ainda que só um pouco e só de maneira imperfeita, a realidade do Brasil de hoje é uma tarefa difícil, comp@s! Aqui vai uma tentativa.Certamente esta é uma visão sobre a realidade do Brasil hoje.

* * *

O ano começava. À euforia dos meios de comunicação que no mundo inteiro anunciavam, com ares de reveillon da globalização a entrada no ano 2000, somava-se, no Brasil, o esforço dos media, da Rede Globo em particular – maior monopólio de comunicação do país –, do governo federal e uma série de instituições para construir um clima de euforia nacional pelos "500 anos" do Brasil. Como parte das comemorações a Globo instalou em todas as capitais do país grandes relógios com um cronômetro que realizava a contagem regressiva para o "aniversário" do Brasil, dia 22 de abril.

A esse clima de festa, que desde os últimos anos – no Brasil como em toda a América – vinha sendo preparado se opuseram, desde o princípio, o movimento indígena, o movimento negro e os vários setores da sociedade brasileira que identificam os 500 anos de presença portuguesa no Brasil com o etnocídio dos povos indígenas, com a escravização negra, com a fome, a miséria e a exploração. O amplo movimento que se constituiu em torno dos "Outros Quinhentos" expressou, de certo modo, o panorama da resistência no Brasil do "fim do milênio" (deles)...

 

Alguns fragmentos...

Na semana anterior ao 22 de abril, no Senado federal, o índio Henrique Surui pôs uma lança no peito do presidente do Senado, figura execrável da política nacional que desde a ditadura militar até hoje mantém intacto o seu poder sobre as instâncias do Estado. Numa atitude histórica, o ato de Henrique Surui traz do passado a memória das nações indígenas dizimadas pelos colonizadores europeus. Na mesma semana, ainda em Brasília DF, indígenas lançam flechas ao relógio da Globo, numa revoada iconoclasta contra o monumento da vergonha.

Enquanto isso, em Porto Seguro (Bahia), local "oficial" da chegada dos portugueses ao Brasil, as nações indígenas construíam o seu monumento de denúncia ao etnocídio que, dias antes das comemorações oficiais, foi brutalmente destruído pelo Exército brasileiro, que invadiu – uma vez mais – as terras indígenas com as armas e a prepotência típicas dos dominadores.

As lutas contra a "comemoração" dos 500 anos se seguiram: no dia 18 de abril o relógio da Globo é parcialmente destruído num ato em Fortaleza, que continua atos semelhantes em Brasília, pelos índios e em São Paulo – em 22 de Março – por comp@s anti-capitalistas daquela cidade. O ato de Fortaleza foi brutalmente reprimido pela polícia,e dele saem ferid@s várias comp@s, entre el@s, um estudante muito gravemente. A este seguem-se outros atos, como em Recife, Florianópolis e Fortaleza.No dia 22, paralelos às comemorações oficiais do "500 anos" ocorrem simultaneamente protestos de índios – em seguida à Conferência dos Povos Indígenas, em Coroa Vermelha – do movimento negro, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e de milhares de brasileiros contra as comemorações. As cenas de repressão à marcha dos movimentos sociais e particularmente ao movimento indígena, vistas em todo o mundo, foram a expressão pública e visível do significado etnocida do Estado brasileiro, desde os últimos 500 anos até hoje.

Mas há algo mais a ser dito sobre a luta dos outros 500: em seu interior se defrontaram também aqueles que querem atrelar a resistência ao capital e ao Estado à luta por cima, à luta pelo poder e aqueles que teimamos em resistir de baixo, de fora e contra as estruturas do mercado e do Estado. Se estávamos juntos contra as comemorações dos outros 500, não é bem certo que estejamos todos do mesmo lado na luta contra o mercado e o Estado.

É interessante observar que durante o ato do Senado, no qual o índio Surui apontava, enfurecido, sua lança contra o presidente do Senado, atrás do senador encontrava-se, de modo mais que patético, um deputado do Partido dos Trabalhadores – PT, em desesperado apelo de "calma" para o índio. Na cena, emblema da coragem e da resistência dos povos indígenas, de um lado, e da arrogância e cinismo das classes dominantes, de outro, ficava muito claro o patético papel desempenhado pela esquerda oficial no Brasil hoje. Não foi por acaso que no ato de Fortaleza e das demais capitais contra o relógio da Globo quase não havia militantes dos partidos – e seus "dirigentes"só chegaram, junto com as luzes da imprensa, para "prestar solidariedade" aos presos – isso quando não eram eles, no caso governo, a chamar a polícia contra as manifestações (como aconteceu em Porto Alegre, RS).

Também na marcha a Porto Seguro destacavam-se as práticas centralistas, autoritárias e reformistas de um lado e a unidade na luta dos setores anticapitalistas que realizaram os atos dos relógios e dos indígenas, por outro.

Na verdade, nos atos dos "Outros 500", como já em dezembro do ano passado no II Encontro pela humanidade e contra o neoliberalismo, em Belém, se desenhava algo de muito novo sob esses céus tropicais: um vivo setor anticapitalista e antiburocrático, contra a esquerda do sistema e suas práticas traiçoeiras, articulava uma intervenção conjunta, numa unidade resultante da prática comum de enfrentamento ao sistema. O Encontro – que teve a sua estrutura absurdamente burocratizada pelo governo municipal de Belém, do PT – foi duramente questionado por todo o setor radical dos movimentos sociais no Brasil que denunciou firmemente as tentativas da burocracia (do Estado, dos Sindicatos e dos Partidos) de transformar o Encontro num espetáculo eleitoreiro. A constituição de um pólo antimercado e antiestado teve na luta dos outros 500 momentos fundamentais, pois foi do enfrentamento comum da repressão, da preparação pela base dos atos (que foram atos e não espetáculos, como os da esquerda oficial), que se foi gestando um tempo novo, um tempo que nasce do fim do tempo, aquele "fim do tempo" que um jovem escreveu com as mãos na base do relógio quebrado da Globo em Fortaleza.

Desse pólo, sem estruturas formais e burocráticas, fazemos parte um bom punhado de gente, bandos os mais diversos, sem fardas, sem camisas únicas, com uma pluralidade de gestos, de caras e de cores muito diferentes da camisa única, da bandeira única e dos partidos, cada qual único. Indivíduos, coletivos e movimentos sociais diversos mas com uma idéia e uma ação em comum: a luta contra o esquecimento dominante como parte das lutas pelas muitas memórias dominadas, a luta contra o tempo único, o tempo da conquista e do etnocídio como parte da luta por outros muitos tempos, a luta contra o poder da imagem espetacular como parte da luta pelas muitas imagens dos mundos, pela imagem Tapeba, Tremembé, Tamoio, Bantu, Iorubá, pela memória da resistência quilombola, da revolta das mulheres no nordeste brasileiro, pela memória da luta proletária, da juventude e outras tantas memórias. A luta, enfim, contra o mercado e o estado como a luta por um mundo novo com várias cores, várias caras mas um só fundamento:a vida autogerida.

A unidade na ação direta contra os relógios foi um momento, fundamental, mas apenas um momento dessa que é, ao que parece, a grande novidade nesse país tão grande e de história tão complicada. A unidade dos setores anticapitalistas se manifestou uma vez mais na greve dos professores de São Paulo, quando a esquerda oficial (CUT, PT e o restante da burocracia estatal-sindical) boicotou o acampamento da Praça da República, fazendo coro com o governo e abandonando @s comp@s que ali resistiam heroicamente aos ataques do governo e da sua polícia. Ainda uma vez, os setores anticapitalistas deram uma demonstração de unidade na luta resistindo bravamente às investidas do governo, da polícia e dos burocratas da CUT.

No Rio de Janeiro, em agosto, @s comp@s da Frente de Luta Popular, anticapitalistas daquela cidade levaram a cabo uma série de protestos, desde as favelas dos morros cariocas (de onde vêm o samba, a luta e a resistência)contra o mercado, num ato num shopping-center daquela cidade, onde se fez a crítica do mercado e – em um ato de protesto na praça da Candelária – contra a violência policial nos morros, denunciando ao mesmo tempo o discurso das elites e das camadas médias apavoradas, que de dentro dos seus condomínios de luxo, com escolas, lojas e um mundo inteiro paralelo e privado, gritam contra a violência pedindo "paz". A resposta do governo do Rio de Janeiro aos protestos organizados pela Frente de Luta Popular foi a tentativa de ligar @s comp@s ao narcotráfico e todo o discurso, cada vez mais globalizado, de deslegitimação dos movimentos sociais através da tentativa de sua criminalização. Mas a este discurso @s comp@s responderam com mais mobilização, não se intimidando, expulsando do morro os agentes infiltrados pelo governo e realizando um grande ato de protesto no dia 29 de agosto na Praça da Candelária.

No Brasil como em toda a América Latina, os histéricos e estéreis gritos de "paz" das camadas médias têm-se conjugado com uma série de iniciativas fascistas, como a proliferação das "seguranças" privadas – ou grupos paramilitares – que só resultam em violência contra as comunidades nos morros, favelas e na periferia das grandes cidades. Aqui, além de toda a violência cotidiana o presidente da república, Fernando Henrique Cardoso enviou um "plano emergencial de segurança pública" que abre espaço para a proibição de todo ato que seja considerado "agressivo" à ordem. A ninguém mais que ao povo interessa a paz, mas não a paz das elites que se ergue sobre as chacinas cotidianas nos morros, presídios, instituições "prisionais" para crianças, nos bairros proletários das grandes cidades e por toda parte onde estamos @s marginalizad@s do mercado.

No Acre, na Floresta Amazônica, os seringueiros mantêm a luta intransigente contra a exploração capitalista e anti-ecológica da floresta, lutando, articulados com outros povos da floresta contra os avanços do capital e a devastação do meio-ambiente. Entre eles, Osmarino Amâncio, um dos fundadores,com Chico Mendes, do sindicato de Basiléia, tem a vida sob constante ameaça dos grandes empresários, dos matadores profissionais e do Estado a seu serviço. Isso não é nenhuma novidade para os seringueiros. A novidade é que o compa que fazia a segurança armada em defesa da vida de Osmarino foi preso, a mando do Governador do Acre que é do PT.

Agora os diversos setores anticapitalistas brasileiros fizemos no 26 de setembro atos de protesto contra o capitalismo - atendendo ao chamado da AGP, como já havíamos feito no 1° de Maio - atos que se somaram ao esforço internacionalista de luta contra o capital, em manifestações horizontais, que buscaram desenvolver as relações de solidariedade que queremos ver substituindo o mercado e o Estado. Os atos do S26 no Brasil foram todos feitos por movimentos de base anticapitalistas; não esteve neles, uma vez mais, a esquerda oficial. Demasiado radicais as manifestações de Praga e do Brasil 26 para o "espírito" das eleições, que agora ocorrem...Estes setores simplesmente não estão interessados em uma unidade com os setores mais radicalizados por que eles (nós) comprometem(os) com suas (nossas) posturas radicais a sua viabilidade eleitoral.

Um breve panorama, algumas reflexões

Se pode pensar, pelo relato de algumas das mobilizações ocorridas no Brasil este ano, que a resistência ao capitalismo aqui é a cada dia mais ampla. Se é verdade que vivemos hoje no Brasil – como no mundo – um momento diferente daquele vivido nos terríveis 90, isso é apenas parcialmente verdade. Um breve retorno aos últimos decênios talvez seja necessário para melhor analisarmos o que está em curso e também para avaliar o tamanho dos nossos desafios.

Desde o final dos 80 vivemos no Brasil, como no mundo inteiro, uma grave crise nas estruturas tradicionais de resistência. No Brasil, o maior movimento de resistência de massas desde as ligas camponesas nos 60, foi o chamado "Novo Sindicalismo", que no final dos 70 se impôs ao país inteiro, a partir das greves do ABC paulista, como a grande força, de início, de oposição à ditadura militar e em seguida, com a criação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do PT, como "alternativa de governo". Ao longo dos 80 a CUT desenvolveu todo um processo de lutas contra as estruturas do sindicalismo tradicional no Brasil para – ao longo de todos os 90 – reproduzir essa estrutura e a sua dependência do Estado.

O PT, nasce da experiência das greves operárias e numa postura de separação das "vanguardas" marxistas-leninistas se apresentava como uma experiência "autêntica" de construção, pelos próprios trabalhadores, do seu partido. Mas em sua origem aquilo a que ele se propõe já dizia a que vinha: mais um partido a tentar mudar as estruturas do Estado, seja eleitoralmente, seja através da luta armada (como era/é o caso das velhas vanguardas marxistas-leninistas) mas sempre, e em todo caso, tendo as mudanças do Estado como horizonte. No caso do PT tratava-se de um partido social-democrata, o que se tornou cada vez mais claro com o passar dos anos.

Durante todos os 80 a luta de resistência foi marcadamente uma luta em torno dos sindicatos. Ao longo dos 90, o agravamento da crise econômica, o incremento tecnológico – que sob a lógica do capital, redundou em desemprego em massa – conduziram a uma grave crise toda a resistência sindical nos moldes do "Novo", já velho sindicalismo. O "Novo velho sindicalismo", frente aos argumentos "indiscutíveis das estatísticas" optou por uma clara postura de negociação "pelo alto" com as federações e confederações patronais de um lado, e de outro pelo absoluto desmonte das comissões de fábrica, organismos autônomos construídos pelos operários em luta durante os 80, ligando-as institucionalmente aos aparatos sindicais.

A inexistência de uma postura de confronto radical ao capital e ao Estado terminou por reproduzir, no âmbito do "novo sindicalismo" o velho estatismo da esquerda brasileira criando, agora com ares de "autonomia dos trabalhadores" uma dependência dos movimentos sociais frente ao Estado, através dos enormes aparatos parlamentares e através da burocracia sindical com a união do projeto do "novo" velho sindicalismo ao projeto social-democrata do PT. A inexistência de um projeto de confrontação global ao capitalismo foi, creio, a marca central da história recente da luta de resistência no Brasil. De um lado, uma enorme energia humana movida pelas condições cada vez mais brutais, aviltantes e inumanas da maioria da população brasileira, de outro, a execução do projeto de destruição da autonomia da resistência popular levada a efeito pela esquerda oficial. De início, com a destruição mesma dos instrumentos de auto-organização e com o passar dos anos, através do reforço cotidiano à passividade, e ao espetáculo institucionais e a utilização de aparatos como a igreja e as ONGs como instrumento de docilização da resistência de modo a mantê-la nos limites da "sociedade democrática de mercadorias". "Participação cidadã", eis a paródia que a velha nova esquerda apresenta no lugar da autonomia e da autogestão ao se colocar no papel de "face colorida" do espetáculo. O papel que esses setores têm cumprido no Brasil nos últimos anos é o papel de minar por dentro a capacidade de resistência autônoma do povo, reeditando – numa versão ainda mais danosa, porque criminosamente amparada na memória recente da resistência no Brasil – os "pelegos" contra os quais, precisamente, lutara o movimento operário brasileiro do qual se originou toda essa geração da nova velha esquerda. Amparada nesta memória recente e na política de utilização do espetáculo e da propaganda oficiais, a "nova velha esquerda" tem sido capaz de articular vitórias cada vez mais importantes no terreno eleitoral. O que me parece importante destacar é algo que é cada vez mais claro mesmo para um "analista" desinteressado da política brasileira: a esquerda não possui mais relação orgânica com a luta, mas é apenas a parte mais colorida do espetáculo, cada vez mais claramente apartada da realidade cotidiana d@s milhões de brasileir@s e habitantes deste país que resistem como podem ao mercado e ao Estado. Para ficar só num exemplo, no Brasil os projetos de "erradicação da pobreza" do Banco Mundial e as campanhas "pela moralização e contra a corrupção", sob o patrocínio do mesmo BM, são recebidas com entusiamo pela "nova velha esquerda oficial"e encaminhadas em muitas ou na maior parte dos casos, por "suas" ONGs. O ex-presidente da CUT, hoje candidato a prefeito pelo PT protagonizou em Seattle um ato só assemelhado, em vergonha, às vaias que levou dos metalúrgicos em assembléia quando propôs o fim da greve da categoria em 92, em nome da negociação: estava uma anarco-sindicalista brasileira do sindicato das trabalhadoras domésticas de São Paulo (única sindicalista presente aos protestos) quando encontrou Vicentinho que ia, apressado, muito triste por voltar ao Brasil devido não haver-se realizado a reunião! Os protestos acontecendo e ele chorando a perda de oportunidade de negociação com as instituições do capital internacional.

De outro lado, as igrejas pentecostais proliferam como ratos em esgotos e as alternativas fascistas cada vez de modo mais desavergonhado se apresentam à luz do dia. O espetáculo e a lógica da passividade estruturam amplos setores de indiferentes sociais com uma perspectiva cada vez mais individualista, seja através das migalhas de consumo das pauperizadas camadas médias e do seu "horror à violência", seja através do espetáculo simbólico das igrejas "Universais do Reino de Deus" ou ainda através dos jovens da periferia das grandes cidades que, frente ao desespero do desemprego e ao nada do "futuro" reproduzem a lógica fascista da sociedade de mercado num salve-se quem puder homicida e alterófobo. É interessante observar que esse cenário é comum , em maior ou menor proporção, à maior parte dos países da América Latina e mesmo aos EUA e Europa. Na verdade, a homogeneização dos mercados acelerada na última década colocou um número de questões comuns cada vez maior para os "outsiders" do "triunfante" mercado global.

Assim, as mesmas pressões que sofrem hoje os migrantes de todo o planeta, sofremos @s nordestin@s, eternos migrantes internos deste país gigantesco, que pela estrutura do desenvolvimento capitalista fomos situados nos últimos 500 anos, na "periferia" do "desenvolvimento nacional". Hoje, nordestin@s são perseguidos e mortos por bandos de carecas e neonazistas em São Paulo, que na esteira do seu ódio alterófobo massacram também homossexuais e negr@s. Esse cenário, cada vez mais tristemente universal, têm-se repetido com uma freqüência cada dia mais assustadora no Brasil.

Entretanto, vimos ao longo dos 90 a retomada e o crescimento da luta contra a perversa estrutura agrária brasileira e a adesão cada vez mais massiva de amplos setores de trabalhadores rurais sem-terra à luta. O MST, Movimento dos Trabalhadores rurais Sem-Terra é, sem sombra de dúvidas, a grande força de resistência de massas no Brasil dos 90 e a ação direta pelos milhares de sem-terra como tática na luta pela reforma agrária têm sido responsável pela mobilização e assentamento de milhares de trabalhadores no campo. Ainda aqui, contudo, a realidade é um tanto distante daquela que se pode pensar desde fora e daquela que gostaríamos. É preciso observar duas questões quanto à luta dos trabalhadores sem-terra no Brasil: em primeiro lugar, o fato de que – especificamente quanto ao MST – a luta pela reforma agrária não tem levado em conta um elemento central no desenvolvimento capitalista do Brasil contemporâneo: o fato de que o pequeno camponês não tem lugar, desde há muito, senão como peça subordinada à lógica do mercado e particularmente às agroindústrias, que introduziram um processo brutal de proletarização no campo. Esse processo foi o sintoma mais evidente da inteira subordinação da produção agrária ao mercado.

Esse fator tem uma grave significação para a luta no campo que se expressa nos assentamentos de reforma agrária do MST: falo da submissão do trabalho camponês à lógica da produção de mercadorias, que irão ser distribuídas pelos monopólios, e que, pela baixa produtividade daquele, ajuda a elevar os preços do que é diretamente produzido pelas agroindústrias. Assim, se estabelece uma relação produtivista que rompe uma relação "tradicional" com a terra, com a natureza, substituindo-a por uma relação anti-humana e anti-ecológica e, em conseqüência dessa relação produtivista forçada pelo desenvolvimento da economia brasileira como parte do desenvolvimento capitalista global, a aceitação de submissão dos assentamentos do MST ao financiamento estatal (através dos programas de financiamento estatais da reforma agrária, reivindicação do próprio MST). Este fato tem provocado, por sua vez, duas outras conseqüências igualmente graves. De um lado, ocorre a "retroalimentação" da lógica produtivista, pois os financiamentos precisam ser pagos e para tal é necessário que os trabalhadores rurais trabalhem em um regime de alta extensividade de horas de trabalho e recorram a métodos tradicionais de plantio, como o uso de agrotóxicos, queimadas e outros, pois se trata de incluir os seus "produtos" no mercado e portanto, de seguir os critérios de produtividade do próprio mercado. De outro lado, ainda em decorrência do produtivismo, a produção de mercadorias, nos assentamentos como em qualquer outra "empresa", exige "especialistas", burocratas, tomadores de decisões, de um lado, e executores, de outro. É essa a origem de toda a hierarquia moderna.

Claro que o MST não é uma empresa rural, mas as cooperativas de produção agrícola dos assentamentos do MST só reproduzem (como há de acontecer com toda cooperativa) as relações mercantis de um lado, e, de outro, a submissão à hierarquia, tradicional no campo brasileiro, agora sob a face nova e inusitada dos "dirigentes" da "luta", com os seus celulares, seus carros e suas casas separadas dos barracos numa brutal separação, enfim, entre @s assentad@s – @s que trabalham – e @s assim proclamad@s "dirigentes". A junção das exigências da produção rural com a história de estatismo e autoritarismo da esquerda brasileira produziu, no MST, efeitos só avaliáveis num contato cotidiano. @s comp@s de um assentamento rural próximo à Fortaleza que lutam fora do MST fizeram relatos das experiências vividas que nenhum artigo seria capaz de traduzir (ver Relatório do Encontro do Comitê de Solidariedade às Comunidades Zapatistas do Ceará). A burocratização, a formação das castas de dirigentes e a reprodução de todo o modelo de passividade característicos da lógica do mercado pela esquerda em todo esse século significou, no Brasil como em todo o mundo, a formação de enormes aparatos institucionais. Que esses aparatos por vezes apresentem formas radicalizadas de luta nada altera quanto ao seu conteúdo fundamental.

O que ocorre na luta no campo brasileiro hoje é a luta, da perspectiva dos dirigentes do MST, pela reprodução do seu aparato através da mística e do espetáculo, reproduzidos cotidianamente. De outra perspectiva, ainda embrionário, mas muito mais promissora, a dos setores que propõem uma resistência radical ao mercado, à produção anti-ecológica, às estruturas centralizadas e burocráticas e lutam por alternativas que se oponham ao financiamento estatal, através de uma relação de solidariedade com os coletivos e comunidades em luta das cidades, fazendo imperar o escambo onde o lucro é a lei. Buscando desenvolver uma agricultura orgânica e buscando o tempo livre como tempo da vida e da luta em comum, como tempo do sonho e da construção solidária de um mundo outro.

Tais considerações sobre o MST não implicam,evidentemente, que em determinadas situações, não possamos estar juntos em lutas concretas e sobretudo não implica, em momento algum, a recusa à solidariedade sempre que os trabalhadores ligados a esses setores sejam alvo da repressão.

A destruição levada a efeito pelo "Novo velho sindicalismo" das alternativas de autonomia operária, com a submissão das comissões de fábrica durante os 90 provocou hoje um cenário de aparente inexistência de resistência operária no Brasil. Parece que acabaram os tempos da resistência massiva às condições de trabalho, às condições salariais. Digo aparente porque com efeito não estamos, agora, diante de manifestações visíveis de resistência ao capital nos meios operários brasileiros. Mas essa invisibilidade não significa ausência de contestação. Desde o seu cotidiano @s operári@s brasileir@s têm desenvolvido uma cultura que nos parece promissora: há hoje, no cotidiano das fábricas, mesmo num contexto de acirrada luta por emprego, que em tese só acirraria a competição, o desenvolvimento de uma ampla cultura silenciosa e solidária de boicote ao trabalho. O relato de alguns compas operários na indústria nos fala de uma cultura da "enrolação" programada, durante a qual cada operári@ não trabalha ao menos 1 hora todos os dias, em momentos alternados, avisando-se uns aos outros da chegada de supervisores e gerentes. Nos relatam também os compas das sabotagens e de greves locais por turnos, autônomas e espontâneas, sem a participação dos sindicatos. Isso não significa, ainda, uma resistência global ou de totalidade, mas é, certamente, o mais forte indício de que também das fábricas novos ventos poderão soprar, e poderão fazê-lo pondo em questão a submissão das suas vidas ao tempo abstrato de trabalho, ao tempo do salário de do dinheiro, ventos que sopram em direção ao resgate do tempo qualitativo de vida, do ócio, elemento tão central da cultura indígena no Brasil massacrada – junto com a horizontalidade daquelas culturas, nas quais os indígenas se põem de cócoras para falar com as suas crianças na mesma altura – pelo extermínio, pela introdução forçada do trabalho escravo e do trabalho escravo do dinheiro.

500 anos de mercado e de Estado: Ya basta!

Falei, no início deste texto, da dificuldade que é expor e analisar a situação da luta anticapitalista no Brasil hoje. Na verdade, são muitas as dificuldades, desde mencionar esse ou aquele momento e não outro a procurar um tom que ao mesmo tempo diga o que deve ser dito e que por outro lado, tal dizer não seja um chamado ao fracionamento da luta anticapitalista, mas ao contrário, momento de somar forças. A maior parte desta dificuldade vem talvez do fato de estarmos experimentando aqui, embora de modo ainda embrionário, um novo modo de agir na luta anticapitalista, um modo que rompe com as clássicas tendências de autofagia da esquerda do sistema, onde mais que preocupados em construir hegemonia desta ou daquela visão, deste ou daquele grupo, estamos preocupados em constituir relações reais de solidariedade na luta comum contra o mercado e o Estado. Quando me alonguei na caracterização da esquerda oficial e dos seus mais conhecidos expoentes, o fiz não no sentido de demarcar uma posição ou de simplesmente mostrar como a social-democracia no Brasil, mesmo a mais "radicalizada" é tão reformista como em toda parte do mundo, mas concretamente para situar que o novo que aqui têm-se gestado se faz exatamente em oposição às estruturas da esquerda que hoje cumprem no Brasil, mais do que nunca, um papel desarticulador da luta revolucionária.

A experiência, única em nossa história, até onde saibamos, de uma unidade efetiva de setores os mais diversos, desde a resistência ainda silenciosa d@s operári@s, dos sem-teto e desempregad@s das cidades aos sem-terra no campo, desde os indígenas às comunidades negras, desde a luta das mulheres à auto-organização dos estudantes, desde anarquistas e anarcopunks a autonomistas e marxistas anti-estado, desde indivíduos que não se proclamam uma coisa nem outra mas anticapitalistas e só, é algo muito animador. Não somos ainda, milhares e milhares por esse país. Mas somos cada dia mais e sabemos que o único a nos fazer avançar será o enraizamento cada vez mais radical da nossa luta, avançando em formas autogestionárias e horizontais de organização e a permanência de uma postura que ao invés de privilegiar os debates sobre as nossas diferenças – e as temos, certamente, muitas – esteja centrada na construção comum da luta autônoma contra o capital e seu Estado. Nesse processo – que, volto a dizer, é apenas embrionário mas que já dá alguns sinais da sua potencialidade – fomos influenciad@s de modo decisivo por outras recentes experiências pelo mundo.

Particularmente fomos influenciad@s pelo olhar atento à experiência zapatista e sua busca de "tender puentes" desde as comunidades autônomas d@s indígenas mexicanos e pelos movimentos antiglobalização, depois de Seattle e pela AGP. Mais recentemente pela experiência – vitoriosa pela própria existência – da greve heróica d@s comp@s da UNAM e sua experiência antiburocrática e horizontal de construção do CGH.

Muito temos a caminhar. Temos a firme consciência, creio, de que não poderemos reproduzir a cultura da esquerda do sistema – que tritura os "inimigos" à esquerda (que supostamente "disputam" as suas "bases") ao mesmo tempo em que faz acordos "à direita" – mas, ao invés, precisamos construir e consolidar laços de solidariedade e de unidade. Sabemos também que – sobretudo depois das desastrosas derrotas das lutas autônomas no século XX – toda a resistência ao mercado e ao Estado só serão efetivas se estiverem fundadas em experiências sólidas e cotidianas de auto-organização e autogestão generalizadas da vida, não-hierárquicas, horizontais, pois a lógica do mercado e do Estado se reproduz mesmo ali onde mais firmemente se diz nega-la e já não podemos mais permitir que digamos algo e façamos o seu oposto.

A efetiva contraposição ao mercado e ao Estado não é, sabemos disso, uma luta d@s brasileir@s, d@s mexicanos ou de qualquer outro povo isoladamente: se há 500 isso já havia sido, de maneira brutal, iniciado a se fazer verdade,em tempos de domínio mundializado das corporações transnacionais ela é, cada vez mais claramente, a luta de tod@s contra estas corporações monopolistas e seus representantes institucionais – os organismos internacionais e os Estados a seu serviço – que se fizeram donos das nossas vidas. Aquilo que os zapatistas dizem quando recusam a tomada do poder de Estado ou os chamados da AGP para a globalização da resistência demonstram o reconhecimento dessa realidade. Nesse sentido, não é à toa que esse bloco de luta anticapitalista no Brasil tenho encontrado, entre outras identidades na luta, o firme reconhecimento da luta anticapitalista como luta que não se dirige à tomada do poder de Estado, mas à substituição radical da organização mercantil das nossas vidas. Essa consciência é, talvez, aquilo que faz menos difícil a tarefa de escrever aos nossos comp@s de luta anticapitalista aí do México sobre como andamos aqui Brasil. Afinal, é da mesma luta que falamos.

Um grande abraço solidário e fraterno!

 

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