Debate sobre o Manifesto da AGP

No último número de nossa revista, publicamos a tradução para o português do Manifesto da Ação Global dos Povos, pretendendo, com isso, dar início a um debate nos movimentos anticapitalista no Brasil sobre a proposta da AGP. Neste número, convidamos a alguns coletivos e indivíduos para escreverem sobre este tema. Publicamos a seguir, os artigos que nos foram remetidos.

 

AVANÇOS E LIMITES DO NOVO INTERNACIONALISMO

Espaço Socialista (ABC)

O surgimento do movimento AGP (ação global dos povos) vem modificar a atmosfera modorrenta destes anos de refluxo do movimento de massas. Vinda a luz nas mobilizações de Seattle em 1999, a AGP trouxe de maneira prática, a luta internacionalista contra o capital, a despeito das quimeras ideológicas em torno das quais gira a maioria dos grupos de esquerda.

Muito tem se afirmado sobre a mundialização do capital, principalmente nos meio jornalísticos que tratam de embelezar o status quo e se preocupam em infundir nos trabalhadores e explorados da inexistência de alternativas ao capitalismo. Fazendo coro com a burguesia e seus meios de difusão ideológicos, os partidos de esquerda (sejam os oficialmente reformista ou pretensamente revolucionários) defendem somente a luta por melhorar as condições dentro do capitalismo, de tentar humanizá-lo, de lutar contra o neoliberalismo, seja através das lutas sindicais de categorias seja através das eleições. Esquecem que ao expandir o seu domínio sobre todo o mundo de maneira direta e incontestável, o capitalismo acirra uma série de contradições sociais, políticas, econômicas e culturais que estão levando a humanidade à barbárie e que não há margens de reforma para aliviar o sofrimento das massas. No seu movimento de valorização, o capitalismo não está preocupado em produzir bens que satisfaçam as necessidades da humanidade. Sua preocupação central é valorizar-se, indiferentemente se o meio para isto seja a produção de alimentos, de armas ou de drogas. E temos visto a opção dos capitalistas pelas drogas, armas e, principalmente, o dinheiro puro e simples fruto de especulações na economia-cassino das bolsas de valores, das dívidas externas e internas, responsáveis pela atraso, fome, miséria e destruição de países e continentes inteiros.

Mas ao mesmo tempo em que o capitalismo cria uma situação qualitativamente nova no que diz respeito a internacionalização da economia, vai corroendo uma das principais travas que o movimento de massas sofreu no período do pós-guerra que foi o nacionalismo e o mito do Estado-Nação já que a mundialização do capital coloca em contato direto milhões de produtores e consumidores por meios de comunicação cada vez mais velozes..

Isto não ocorria no período anterior do pós guerra até os anos 80. Apoiado pela burocracia dos Estados burocráticos (URRS, China, Cuba), que tinha interesse em manter os trabalhadores sob seu domínio atomizados e desorganizados para poder explorá-los, e pelas burocracias sindicais e partidárias que fortalecidas com o boom capitalista do pós guerra, o imperialismo na fase fordista centrou suas ações em conter os trabalhadores nos restritos marcos dos Estados Nacionais, infundindo-lhes que o Estado de Bem Estar Social era o máximo que eles poderiam alcançar em troca de se subordinarem aos domínios do capital, uma vez que a revolução socialista era uma utopia que nunca seria alcançada bastando olhar para a URRS e Leste Europeus e ver a situação dos povos daqueles países...

Este esquema ruiu com a crise capitalista dos anos 70 e com a queda do muro de Berlim. A crise do modelo fordista do capitalismo e a queda do estalinismo abriu um novo ciclo histórico na luta de classes e, dentre outras coisas, colocou os trabalhadores frente a necessidade de encontrar um novo curso para seu movimento na luta contra o capital.

No entanto, houveram, no decorrer dos anos 70 e 80, várias lutas importantes onde os trabalhadores foram derrotados (Inglaterra, EUA, Itália) e que gerou um refluxo que se mantém e que impede até o momento, o movimento operário retome a cena dos enfrentamentos contra o capital.

Esta situação pela qual passa o movimento operário obscurece um fato transcendental que é o fato que o novo marco das lutas contra o capital se dá na esfera internacional. Este conceito presente no início do movimento operário, foi abandonado com a ascensão das burocracias sindicais e estalinistas aos postos de direção dos sindicatos e partidos de esquerda. Hoje, o marco nacional está questionado pela própria burguesia ao expandir seus domínios e negócios pelo mundo. O livre movimento de capitais pressupõe fim de barreiras alfandegárias e as políticas econômicas devem ser homogêneas e ajustar-se aos ditames dos especuladores.

Frente a falência dos Estados e governos diante do novo ciclo histórico, o imperialismo tem procurado construir novas organizações que lhe dêem suporte no seu movimento de valorização. Estas organizações são a OMC e o Banco Mundial, alem do velho FMI, e tem se comportado como um verdadeiro governo sobre todos os países, especialmente sobre os países subdesenvolvidos. Impõe política de juros, de abertura de mercado, de privatizações, de patentes de tecnologia e de investimentos, aos governos de plantão, cabendo a estes apenas aplicar tais políticas, sob pena de verem o capital migrar para outros países que lhe sejam mais favoráveis.

Frente a essa realidade é que surge a AGP, num marco defensivo, como uma reação aos novos senhores do mundo, que governam sem controle e que definem o destino de milhões de pessoas a miséria e à fome.

AS VIRTUDES DO NOVO INTERNACIONALISMO

Um dos elementos mais importantes que se destaca com o movimento AGP é que esta foge dos padrões normais de organização aos quais estamos acostumados. Lembrando que o movimento operário retrocedeu em sua consciência internacionalista no pós guerra fruto das relações estabelecidas pelas direções estalinistas e pelo imperialismo, o internacionalismo proletário passou a ser apenas uma bandeira na mão de pequenos grupos de esquerda. Tornou-se também sinônimo de Internacional partidária e assim, ficou circunscrito ao jargão abstrato de uma esquerda isolada do movimento de massas e palco de lutas fracionais.

A luta internacionalista, conduzida pela esquerda vanguardista não atingia setores do movimento de massas e reduzia-se a comemorações anuais ritualistícas. A AGP vem transformar este quadro. Não consideramos que o internacionalismo tenha sido recuperado. Longe disto e mais a frente falaremos sobre este tema. No entanto, ao a AGP centrar a sua luta contra o centro do poder institucional do capital, arregimenta setores de vanguarda e de massa. Questiona de maneira prática o papel das organizações como o FMI, a OMC e promove uma luta de maneira concreta contra as ditas organizações. Deste modo, supera de maneira brilhante, uma etapa de propaganda que ficava restrita aos pequenos agrupamentos e traz a discussão para um circulo muito mais amplo do movimento, promovendo um choque contra-cultural sobre as massas, que ao verem as imagens televisivas dos confrontos de rua em Seattle e Washington, passam a questionar o FMI e a OMC. Com isso, abre-se grandes oportunidades para a realização de trabalhos de conscientização junto ao movimento de massas.

O segundo elemento a se destacar é que a AGP rompe com os padrões economicistas do movimento operário tradicional. Ao abordar em seu manifesto as várias facetas da dominação do capital neste ciclo onde se insere a mundialização e dos seus desdobramentos sobre a realidade, consegue ser ponte de mobilização de amplos setores que estão por fora das estruturas tradicionais de mobilização. Com seu manifesto, a AGP procura se inserir em vários setores como indígenas, feministas, imigrantes, juventude, etc e o que é mais importante, respeitando as diversidade e as identidades de cada movimento. Consegue desse modo ser aglutinador de forças e não um entrave as mobilizações.

A forma organizativa (caberia falar em não-forma organizativa) da AGP é sem dúvida a mais desconcertante sacada. Ao se definir como uma não-organização, e entendemos como um não-aparelho que seja controlado/controlador, a AGP elimina com um só golpe, toda a tradição secular dos movimento de massas e leva um questionamento prático sobre os dogmas organizativos que regem as esquerdas tradicionais. Não criando um aparelho, elimina a necessidade da parafernália burocráticas, com suas respectivas burocracias, e evita que surjam grupos ou frações que lutem em torno do controle deste aparelho a fim de se beneficiar das regalias econômicas e de status que o domínio do aparelho traz. Evitam também a possibilidade de repressão e de cooptação ao não ser uma organização institucional a qual os governos deveriam se dirigir. Resgata praticamente, em estado puro, o conceito central de uma organização de ser um meio de organizar e não um fim em si mesmo. Ou seja, só pela não- organização (aparelhística) é que foi possível organizar lutas contra a OMC e por em movimento uma gama de setores que nunca estariam juntos através das organizações tradicionais. O resgate do conceito de organização como meio e não como fim é uma conquista que não pode se perder. Cabe também ressaltar a horizontalidade e a ausência de líderes, o que nos leva ao terreno da auto organização e da auto disciplina para enfrentar o capital, derrubando o mito do centralismo democrático no aspecto de que o controle das direções é fundamental para o sucesso de uma ação. Seattle e Washington falam por si sós.

ELEMENTOS PARA REFLEXÃO SOBRE O NOVO INTERNACIONALISMO

Nos reivindicamos dos marcos de luta propostos pela AGP. No entanto, nos cabe apresentar alguns questionamentos sobre o movimento AGP. A contradição fundamental da sociedade é a contradição entre capital e trabalho e daí derivam todas as outras. Neste ponto cremos que falta ao movimento AGP uma maior definição programática, a fim de superar os marcos difusos de uma luta contra o capitalismo neoliberal. As ações feitas até aqui, promovidas pela AGP, foram irrepreensíveis, mas faltaram em atingir os destacamentos da classe trabalhadora para ações de maior fôlego contra o capitalismo e cremos que este é o mais importante limite do novo internacionalismo.

Ao não ter definições mais claras sobre a questão de classe, a AGP acaba concentrando-se apenas em ações de caráter superestruturais, perdendo a oportunidade de transformar este movimento em uma potência contra o capitalismo. Por exemplo a AGP poderia desenvolver uma campanha contra a discriminação do trabalho imigrante, contra o desemprego, contra o trabalho infantil, etc

Falta também no programa uma definição de que tipo de sociedade queremos que suplante a atual. Nesse sentido, as definições programáticas da AGP são difusas e podem não servir para orientar uma luta mais ampla contra o capitalismo. Corre-se o risco de que sejam alimentadas ilusões do tipo "retorno ao modelo econômico fordista" ou "humanização do capitalismo" o que seria um erro, tendo em vista que não é possível humanizar o capitalismo.

Outro elemento polêmico é o do privilégio da desobediência civil e da não violência como forma central de mobilização. Cremos que é equivocado definir a priori como o movimento vai se mobilizar. E mais, o descarte de que não será empregada a violência. O estado capitalista domina tanto por meio da violência institucional como por meio extra legais. Estas formas de violência só podem ser enfrentadas de maneira resoluta pelo emprego da força do movimento de milhões de trabalhadores e explorados. Somente a analise cuidadosa da correlação de forças é que pode dizer se podemos ou não se empregar a força para nos defender dos ataques do capitalismo ou mesmo para derrotá-lo. Não cabe ao movimento fazer apologia da utilização da violência. Mas cabe ter claro a necessidade de defesa frente aos ataque dos estados capitalista, a desconfiança dos órgãos da justiça e da democracia burguesa e de que a transformação radical das formas de propriedade e de sociedade implicarão na utilização de meios violentos.

Este debate insere-se no marco de que queremos avançar na superação do capitalismo. Nossos referenciais são os da revolução total contra o capital. Com isso queremos resgatar o que de melhor existiu na luta de todos os revolucionários, independente de qual corrente ideológica, aprender com os erros do passado e transformar estas experiências em ensinamentos e programa. Não faremos isto isoladamente nem acreditamos que tal empreitada seja cumprida por um grupo ou partido. Somente o esforço conjunto de todos os lutadores poderão cumprir com esta tarefa. A AGP surge em um momento da realidade da luta de classes e é fruto desta realidade. Suas virtudes prenunciam um caminho que o movimento de massas deverá percorrer para ter sucesso na superação do capitalismo: o da auto organização e auto disciplina, da democracia direta e sem burocratas da solidariedade e do respeito as identidades. Os limites de programa inserem-se no marco da etapa atual da luta de classe, de refluxo e de desmoralização de todo um setor da vanguarda, das crises ideológicas que afetam milhões de trabalhadores em todo o mundo. Não é possível afirmar a priori o programa acabado para a luta pelo socialismo. Será preciso muita luta e paciência, debates e estudos para que possamos chegar a uma proposta superadora do capitalismo, que mobilize milhões de mulheres e homens. O primeiro passo foi dado. Ao colocar em movimento setores de vanguarda ampla e ganhar as ruas contra as instituições de governo global do capitalismo, a AGP deu um passo fundamental para ajudar a superação do estado atual das coisas. Caberá aos milhares de ativistas em cada país, que se mobilizam sob suas bandeiras fazer avançar não só o movimento mas também o programa.

 

Consolidar posições de autonomia locais

Maxwell

A AGP tem tudo para se tornar uma radical crítica prática à representação e ao sistema da passividade imposta. Os seus princípios organizativos já possibilitam isto e são o suficiente para "filtrar" a sua composição, embora falte muito ainda para que as "massas" (perdoem-me o vício de linguagem!) sejam as suas protagonistas fundamentais. Falando nisso, não nos deve parecer estranho o fato da esquerda tradicional não se sentir à vontade de participar em algo tão "herege", "espontaneista" e "anárquico". Na realidade, tais esquerdistas, quando se aproximam dos fóruns e movimentações da AGP, logo percebem que não há aparatos e poder a se ganhar ou direções a se disputar e, assim, tratam logo de se afastar. Devemos ficar alegres com este fenômeno e certos de que o risco de infiltrações dessa esquerda não é algo que possa ser visto como o problema.

O Manifesto da AGP é uma carta de intenções consensual e não um programa rígido de revolução. Isto permite que as ações se desenvolvam sem estar presas a uma camisa-de-força. O Manifesto aborda essencialmente a defesa da diversidade e da autonomia, contrapondo-se radicalmente a toda tradição estatista, dirigista e monolítica que dominou o movimento do proletariado neste século. Este aspecto é tão ou mais determinante do que a própria clareza (apesar de alguns pontos contraditórios presentes no próprio Manifesto) que está exposta sobre a imperatividade de uma luta mundializada contra o capital – concretamente as corporações transnacionais - e os caminhos a serem trilhados nesta luta.

Entretanto, as ações globais têm até agora se resumido a eventos de combates de rua e manifestações como exercícios muito embrionariamente insurrecionais. Isto é importante, mas insuficiente e se se fetichiza, tornando-se eventismo, trará sérias dificuldades para a AGP. O Manifesto da AGP parece ter uma certa consciência desse perigo, quando aborda a necessidade de se alicerçar em organizações de base locais (grassroots). Mas esta boa e correta intenção pode ser barrada pela cultura ativista presente, que traz consigo o perigo de provocar uma relação social dirigista pela qual uma massa apenas desloca-se da influência da esquerda tradicional para a de uma "esquerda alternativa" pois resume sua ação a participar das atividades dos calendários de lutas globais definidos pelos fóruns militantes da AGP.

As militâncias da AGP precisam se debruçar sobre como sair do gueto a partir do estabelecimento de relações diretas com as populações exploradas amorfas, as que, como disse Mumia Abu-Jamal, ainda realizam aquele acordo silencioso que faz viver o sistema. Creio que isto só ocorrerá havendo um trabalho social permanente através do qual as ações e construções (do local ao global) sejam concebidas, produzidas e executadas não mais por uma vanguarda (os ativistas, os coletivos, os que tomam as primeiras iniciativas, etc) mas por coletividades inteiras cada vez mais conscientes e (auto)organizadas. Caso contrário, poderá ocorrer surpresas muito similares à que o EZLN se viu logo após o cessar-fogo em janeiro de 1994: "se a vocês lhes surpreendeu o primeiro de janeiro, a nós nos surpreende o dois de janeiro. E de uma forma e de outra vocês e nós temos estado nos desencontrando. Nós pensando que vocês (a sociedade civil, nota minha) são a nossa vanguarda e vocês pensando que nós somos a vanguarda de vocês... Vocês esperando que nós lhes digamos o que fazer e nós esperando que vocês nos digam o que devemos fazer..." (A Palavra dos Armados de Verdade e de Fogo, 1994).

O que fazer para que os fundamentos e as decisões não sejam elaboradas exclusivamente nos fóruns superestruturais da AGP? O que fazer para que os trabalhos de base locais não se resumam a tentar induzir as populações a realizar os combates definidos em tais fóruns? Não podemos estimular uma atividade passiva, onde "massas" locais vão para uma ação que não foi elaborada por elas próprias, mas por fóruns distantes de seus cotidianos. Neste caso, não haveria consciência autônoma, que se demonstraria na capacidade real das pessoas decidirem e executarem plenamente em seus diversos espaços de vida social as ações globais e a independência em relação aos valores e instituições do sistema. Há ou pode haver uma consciência política sem dúvida, mas heterônima, pois se baseou numa apropriação de algo que fora criado exteriormente.

Penso que a AGP deveria neste momento histórico envidar seus principais esforços no sentido de consolidar posições de autonomia locais, que se articulariam em rede mundial, preparando-se meticulosamente e a longo prazo, na base social, para realizar futuros combates globais decisivos. Não se poderá realizar esta empreitada sem uma nova cultura política que estimule a autoorganização social na vida cotidiana. Sem essa nova cultura dificilmente poderemos ir além da mera propaganda da necessidade de formas de contra-poder popular ou da autonomia. Em suma, as atuais militâncias que fazem a AGP deveriam abrir mão de seus protagonismos (que produzem objetivamente uma nova espécie de vanguardismo ativo!) para construir um protagonismo mais amplo, socialmente organizado e enraizado, com o povo que ainda desconhece a sua força e capacidade transformadora. A democracia direta, por exemplo, deveria nesse ínterim ser uma atitude vivida e não uma palavra de ordem a ser propagandeada. Creio que uma mudança tática voltada para construir e fortalecer trincheiras autônomas prepararia a realização de lutas de movimento, desgaste, fustigamento e decisão bem mais poderosas dos que as que acontecem atualmente com as ações globais contra o capitalismo e que reúnem até milhares de ativistas (mas apenas - principalmente - ativistas!).

Quatro aspectos fundamentais do Manifesto da Ação Global dos Povos

Pablo Ortellado

Ação Local por Justiça Global (SP)

Manifestos em geral são apenas palavras sobre o papel – sem vida, nem substância. Raras são as vezes que um manifesto cumpre de fato sua função que é a de orientar e estimular a prática social. O manifesto da AGP é um desses casos raros. Isso se deve, a meu ver, a quatro aspectos fundamentais.

1. Ação direta

A AGP foi fundada em 1998 por importantes movimentos sociais (entre eles os dois mais importantes: zapatistas e MST) para ser um contraponto à OMC (Organização Mundial do Comércio) e ao "livre" comércio. Para isso, ao invés de convocar conferências e produzir documentos, ela chama movimentos de base de todo o mundo para a ação direta no momento em que os organismos internacionais mais importantes se reúnem para decidir o destino da humanidade. Foi assim que grandes manifestações aconteceram durante o encontro do G8 (grupo dos países mais ricos), da OMC e do FMI e Banco Mundial. Da mesma forma, ações autônomas, não vinculadas, mas seguramente inspiradas pela AGP, aconteceram nos encontros do Fórum Econômico Mundial, da OCDE (outra organização dos países ricos) e da OEA (Organização dos Estados Americanos). Essas manifestações acontecem não apenas no lugar onde esses encontros dos poderosos ocorrem, mas em todo o mundo e ao mesmo tempo. São chamados por isso de "dias de ação global". Não se tratam de pressões parlamentares nem de elaboração de plataformas, mas de protestos e desobediência civil que visam questionar e pressionar os donos do poder. Com a ação direta se rompe a apatia das formas tradicionais de representação e a própria forma da luta (democrática e autogestionária) anuncia a forma de organização social que se quer.

2. Superação das lutas locais: anticapitalismo

Quem organiza esses "dias de ação global" são os grupos locais, de forma autônoma, apenas respeitando alguns princípios gerais da AGP. Desde o dia 18 de Junho de 1999, que para muitos foi o primeiro dia efetivo de ação global (houve um outro antes, em 16 de Junho de 1998, mas foi apenas o início da campanha), houve um esforço enorme de superar o que se chamava de "lutas locais". Os anos 60 e principalmente 70 viram o surgimento e a consolidação de novas questões e lutas que não coincidiam exatamente com a luta dos trabalhadores: luta das mulheres, dos negros, dos homossexuais, contra a degradação do meio ambiente etc. Em muitos lugares essa luta "especializou-se" e houve um distanciamento entre os movimentos políticos tradicionais e as "novas lutas". Em 18 de Junho, no entanto, grupos no mundo inteiro tomaram plena consciência (e mais importante, puseram em prática) que cada uma dessas lutas era uma luta contra o capitalismo – que o patriarcado, a homofobia, o racismo, o militarismo e a degradação ambiental eram apenas expressões particulares de um todo chamado capitalismo. Para que a superação da parcialidade das lutas fosse conseguida, a inspiração do manifesto, que enumera esses problemas e os articula no conjunto do capitalismo, foi essencial.

3. Internacionalismo

Desde a fundação da AGP estava claro que a luta anticapitalista tinha que ser internacional ou transnacional. A nova etapa do capitalismo havia avançado como nenhum momento histórico precedente a transnacionalização do capital e ficava evidente que apenas uma resistência também transnacional seria eficaz. Enquanto o capital se movimenta rapidamente cruzando todas as fronteiras, a força de trabalho e as legislações de proteção social ficam restritas a âmbitos nacionais. Isso gera uma enorme disputa internacional pelos capitais que empurra todos os direitos para baixo. Se um movimento nacional tenta resistir à desregulamentação da legislação social, o capital ameaça (e efetivamente cumpre) transferir-se para outra nação onde os padrões de proteção são menores. Por isso, apenas uma pressão mundial conjunta pode impedir a destruição dos direitos e, aos poucos, fazer avançar um novo modelo de sociedade.

4. Uma nova forma de organização e estrutura

O Manifesto da AGP oferece uma forma de organização que desestimula a burocracia e proporciona a autonomia dos grupos de base. Com isso ela não apenas combate a centralização mas incentiva formas de democracia direta. O Manifesto enfatiza que não há uma única via para transformação social e que assim, várias abordagens das questões sociais são possíveis e legítimas. Isso possibilita que grupos tão diferentes como sindicatos, movimentos camponeses, coletivos feministas e grupos de bairro e abordagens também diferentes como a greve, a criação de cooperativas e a desobediência civil, se articulem de uma forma que respeita suas diferenças. Por outro lado, esses grupos não têm apenas autonomia frente ao conjunto da AGP, ou seja, não têm o compromisso democrático apenas na relação entre eles – têm também o compromisso democrático interno, de praticar e defender a democracia direta: "precisamos desenvolver uma diversidade de formas de organização a diferentes níveis, que têm que ser independentes das estruturas governamentais e dos poderes econômicos, e baseadas na democracia direta. Estas novas formas de organização autônoma deverão emergir de e se enraizar em comunidades locais, construindo pontes para se conectar a diferentes setores sociais, povos e organizações que já estão lutando contra a mundialização em todo o mundo."

Enquanto o Manifesto organiza e esclarece tendências há muito tempo latentes no âmbito dos movimentos sociais e a própria AGP fornece uma estrutura e coordenação mundiais para a sua efetivação, começa a construir-se um novo movimento mundial de resistência: plural, democrático, baseado na ação direta e anticapitalista.

 

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