"Cultura pra cuspir na estrutura"

Movimento de Estudantes Revolucionários

Esta é a análise de cultura das Teses apresentadas pelo Movimento de Estudantes Revolucionários (M.E.R.) ao 46º Congresso da UNE, realizado em junho/julho de 1999, em Belo Horizonte 

Sob o familiar, descubram o insólito

Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável

Que tudo o que é considerado habitual,

provoque inquietação. (Bertolt Brecht)

A universalização da produção de mercadorias, que se realizou nos últimos séculos, significou a perda  da qualidade no mundo, a sua completa quantificação. Todo o modo de vida humana se transformou, submetido doravante ao incontrolável movimento da economia mercantil. A vida humana foi "economizada". Progressivamente, todos os atos humanos foram submetidos à lógica mercantil: o trabalho, os costumes, o lazer e a cultura. Novos hábitos,  novas rotinas e novos valores foram introduzidos na vida cotidiana, modificando-a profundamente. A maior parte da vida cotidiana passou a girar em torno da sobrevivência, da venda do trabalho, da aquisição de dinheiro. O tempo vivido foi submetido ao tempo de trabalho e, como este, quantificado. Todos os utensílios e artefatos, os objetos de uso na alimentação, na vestimenta e no lazer, produzidos industrialmente em série e adquiridos mediante dinheiro, passaram a testemunhar o domínio da quantidade e a perda da qualidade, da diferença, do detalhe, da escolha, do estilo.

A "economização" da vida causou a crise da cultura. "Cultura" dizemos aqui não na forma específica da arte e da erudição, mas no seu sentido mais amplo como conjunto das atividades, relações, expressões, costumes, formas de vida que caracterizam a cotidianidade, a história e o sentido de vida dos indivíduos e das coletividades. Numa sociedade dominada pelo capital, é retirada dos indivíduos a constituição autônoma de sentido: a vida torna-se, para os homens, um sem-sentido para que o "sentido" do capital (a busca de sua autovalorização) possa se realizar.

No capitalismo monopolista contemporâneo - que se caracteriza pelo hedonismo consumista, devido ao aumento da capacidade de produção de mercadorias, e pela ampliação dos investimentos capitalistas no chamado "ramo de bens culturais" (os objetos relacionados ao prazer sensível, à experiência artística e ao lazer) -, a satisfação das necessidades dos indivíduos no mercado passou a se realizar segundo os planejamentos dos businessmen. Assim, o capital passou a dominar não apenas o tempo de trabalho, mas também o tempo de não-trabalho, o tempo "livre". O tempo "livre" e o tempo de trabalho integraram-se num tempo único a serviço do capital. Todo o tempo vivido passou a ser o tempo de não-vida (isto é, tempo da mercadoria, do dinheiro e do capital), da falta de sossego e de repouso.

A concentração econômica, nos monopólios capitalistas, da maior parte da produção industrial e serializada dos objetos de fruição humana possibilitou a imposição niveladora e homogeneizadora do gosto: na arte, na vestimenta, na culinária, no lazer. Modos de vida locais e nacionais, idiossincrasias pessoais e tradições familiares, preceitos morais e religiosos seculares, foram todos, pouco a pouco, mas com uma força violenta, submetidos à lógica do mercado e de seus modismos. Abolida a diferença qualitativa do modo de vida, o consumismo incentiva a diferença quantitativa: quem mais compra, mais é. A universalização do mercado ampliou a concorrência entre os indivíduos (e, portanto, o próprio individualismo) não apenas para a esfera do mercado de trabalho, mas também para a de bens de consumo. Toda a vida cotidiana passou a ser o lugar da satisfação das exigências do mercado e do capital: trabalhar e consumir, trabalhar para consumir, trabalhar e consumir para sobreviver (o que é diferente de realmente viver).

Assim, a crise da cultura resultou, no capitalismo contemporâneo, na própria "crise da vida cotidiana" (Debord), lugar a partir de então do trabalho forçado (assalariado), da falta de tempo e de espaço (espaço geográfico, também submetido aos interesses econômicos da indústria, do comércio, do turismo...), da passividade, do lazer repetitivo e sem graça, do tédio, da solidão e da falta de comunicação e diálogo entre os indivíduos. Submetida à lógica do mercado totalitário, a vida cotidiana dos indivíduos passou a ser cada vez menos o lugar de uma vida para si. Como um Deus único, o mercado é ciumento e vingativo: quem a ele se submete, deve admitir a obediência e a perda da vontade; quem ousa desobedecê-lo, conhece a marginalização e a desgraça (e, com o desemprego, ele afirma: "muitos serão os chamados, poucos os escolhidos...").

A cada impulso modernizador do capitalismo nas últimas décadas (particularmente após a Segunda Guerra), a juventude opôs resistências. Essas resistências não ocorrem, no entanto, devido a uma "rejeição natural" da juventude a "um mundo que ela já encontra feito", como explica a sociologia conservadora e naturalista. Ela ocorrem, isto sim, como formas de recusa social à assimilação de uma cotidianidade que levou às últimas conseqüências a coisificação das relações sociais, a mercantilização da vida e ao completo vazio de sentido. É, antes de tudo, a recusa a "amadurecer" segundo os critérios da economia dominante e as "habilidades" que tal economia requer (educação para o mercado de trabalho, a disciplina fabril nas escolas e universidades, a obediência na família como preparação à obediência no emprego, demonstrar-se "por dentro" e "atualizado", demonstrar mérito e ser melhor do que os outros...). Fundamentalmente, essas resistências demonstram o quanto se tornou miserável e insuportável a vida no capitalismo contemporâneo.

O fato de que até hoje a sociedade capitalista tenha conseguido absorver essas insatisfações e integrar os insatisfeitos não nega o que estamos dizendo sobre a sua causa, mas apenas demonstra que até hoje a crítica da vida cotidiana não foi levada às sua últimas conseqüências, como crítica do próprio capitalismo. Foi a fragmentação das contestações que permitiu ao capitalismo isolar, retirar o significado crítico e transformar em formas de mercadoria as formas de recusa, de insolência, de modos de vida alternativos presentes e criados por esses movimentos contestatórios.

Hoje, quando a crise do capitalismo demonstra todo o "limite histórico" (Marx) desse sistema, abre-se novamente a possibilidade de questionamento global de uma "cultura" baseada no mercado e no dinheiro: a crítica do consumismo, da arte mercantilizada, do trabalho forçado, da sobrevivência, do individualismo e da massificação.

Frente a isso, consideramos de fundamental importância que o movimento estudantil (que não é só o movimento das entidades e correntes políticas, mas de toda forma de expressão dos estudantes), como movimento que aglutina um setor da juventude, tenha um programa revolucionário de cultura, um programa de crítica da cultura dominante.

Mas, segundo pensamos, a crítica da cultura deve ser, antes de tudo, a crítica da atual vida cotidiana. Essa crítica deve ter como essência a ruptura com a passividade e a falta de comunicação entre os indivíduos, criando, assim, uma cultura de resistência e recusa à sociedade mercantil, possibilitando aos indivíduos outras formas de experiências (de diversão, artísticas, de socialização, políticas etc.) que liberem a espontaneidade, a criatividade e a autonomia. Não se trata aqui de uma "política cultural" para os movimentos sociais,  mas de uma compreensão segundo a qual o conjunto de cada um desses movimentos sociais constitua para si uma "cultura de recusa" (Kurz). Com base nisso, é que deve ser elaborado um programa de cultura para o movimento estudantil.

Do ponto de vista prático, pensamos que devemos urgentemente romper com as calouradas-espetáculo, cada vez mais presentes em nosso movimento, que em nada de diferenciam das experiências dos shows business, dos mass media e dos "eventos" oficiais (estatais) de cultura. As calouradas, que foram elaboradas pelo movimento para substituir os "trotes" e possibilitar a integração entre os estudantes, vêm nos últimos anos perdendo o seu significado de origem, sendo cada vez mais uma mera reprodução da cultura do mercado.

Do mesmo modo, a Bienal da Cultura promovida pela diretoria da UNE, em janeiro, em Salvador, é um exemplo do que não deve ser um programa revolucionário de cultura. Organizada com o apoio do Governo da Bahia, da Oderbrecht e da Bravo, a Bienal reproduziu a posição de espectador do público, a experiência da mercantilização da arte e o lazer passivo.

Ao contrário, pensamos que, neste Congresso, devemos, a partir das experiências práticas e espontâneas já existentes, elaborar um programa prático de cultura para o ME a partir da realização de oficinas, do incentivo ao amadorismo (arte não é necessariamente uma profissão), de abertura para a espontaneidade e a rebeldia. Por exemplo: que tal um Encontro nacional de "zines", jornais e revistas culturais? Que tal a reedição do Quarup (como aquele realizado no final dos ano 80), que seja um espaço para a experimentação, as discussões teóricas sobre a cultura, a insolência ...? Que tal...?

PS: Uma pergunta para os stalinistas da diretoria da UNE: o que Brecht tem a ver com a Oderbrecht?

 

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