NOTAS EDITORIAIS

 

Somos agora, simplesmente, proletarizad@s contra acorrente...

Resolvemos mudar de nome: chamamo-nos não mais "coletivo contra a corrente", mas agora, simplesmente, "proletarizad@s contra a corrente". Essa mudança expressa algumas reflexões que temos feito, e feito no diálogo que temos mantido com companheir@s de outras experiências de luta e reflexão.

Antes, já havíamos decidido substituir na frase "proletários de todo o mundo, uni-vos" o "uni-vos" pelo "unamo-nos". Tudo começou com uma conversa (que não é só conversa, mas diálogo efetivo) com um companheiro anarcopunk que, uma vez, nos inquiriu por que este "chamado de fora", como se nós não nos incluíssemos entre @s proletarizad@s. De imediato, assentimos que, de fato, essa expressão "uni-vos" obscurecia um elemento fundamental.

Também já há alguns meses, vínhamos evitando o uso do termo "proletári@", pois, ainda que este termo de fato já traga a denúncia das nossas condições de existência, enquanto bilhões de indivíduos que nada possuímos senão nossa força de trabalho e, por isso, somos obrigad@s a vendê-la, a trocá-la por um salário, submetendo-nos, assim, à hierarquia do trabalho alienado; ainda assim, na sua forma substantiva, este termo – ainda que seja ele mesmo uma denúncia e um escândalo – facilita esconder o processo histórico de proletarização, ou seja, o caráter histórico da nossa condição proletária, o fato de que fomos, em todo o mundo, submetid@s pela força física e a coerção econômica a essa condição.

Enquanto substantivo, o "proletári@" ajuda a manter o esquecimento; já o adjetivo "proletarizad@" ajuda a lembrar. A lembrar e, por isso, a tomar consciência de que não somos, substantivamente, proletári@s; que foi-nos historicamente imposta essa condição, condição que não apenas não nos é essencial, mas é-nos também estranha e fonte de toda a alienação. Não fazemos dessa escolha qualquer "cavalo de batalha", mas consideramos que a linguagem é algo essencial: ela é sempre a linguagem do esquecimento ou da lembrança, do mando/obediência ou da desobediência e da subversão, da intolerância ou da solidariedade...

É fundamental dizer que essas reflexões sobre os termos "proletári@"/"proletarizad@" se iniciaram com nosso diálogo com @s companheir@s do Grupo Pernamocambo Capoeira Angola que, na busca de constituição de uma tradição afro-ancestral, da preservação da memória de resistência e negação da condição de escravização, afirmavam para nós: "não somos proletári@s, fomos proletarizad@s!" De fato, dissemos nós, tod@s fomos proletarizad@s, compreendendo, assim, a necessidade de, nesses termos, não esquecer o que somos, bem como recolher na linguagem (que compõe a prática) – como partes da mesma luta contra o assalariamento e a mercantilização – as diversas formas de resistência à proletarização: a resistência feminina, negra, indígena, "migrante"...

Assim, quando decidimos não mais nos chamar "coletivo", e sim "proletarizad@s contra a corrente" quisemos dizer que não nos colocamos – por que não o somos! – como um aparte do restante d@s proletarizad@s: mas uma parte; somos algumas/alguns como uma infinidade de outr@s, que, organizad@s ou não, resistimos cotidianamente ao mundo das hierarquias do dinheiro e dos Estados, que cotidianamente estamos "contra a corrente". A crítica que temos feito das vanguardas, das organizações separadas, do especialismo, do poder separado e de todas as separações é o que, em última instância, justifica essa mudança.

Desfiliamo-nos dos sindicatos... desfiliemo-nos dos sindicatos!

@s companheir@s do nosso coletivo que eram filiados aos sindicatos de suas respectivas categorias, coerentes com a análise que publicamos neste número ("Para sempre sindicatos... enquanto houver capital e trabalho assalariado"), resolveram desfiliar-se deles. A opção é, antes de tudo, de cunho absolutamente pessoal: não estamos a fim de continuar contribuindo para sustentar o parasitismo dos burocratas sindicais; e, como tudo é pessoal, essa atitude tem também a ver com nossa posição prática frente ao mundo: é preciso fazer a denúncia do corporativismo e do sistema da passividade e da representação que os sindicatos necessariamente encarnam. E com isso, também queremos dar o nosso mau exemplo... desfiliemo-nos tod@s dos sindicatos! Pela auto-organização em locais de trabalho, moradia e estudo! Contra o trabalho assalariado e o sistema da passividade! Chega de sustentar a burocracia sindical.

A propósito, viva o fim do monopólio da UNE sobre as carteiras estudantis! Tão lamentável é a situação de passividade dos estudantes universitários e secundaristas frente às "suas" entidades sindicais, que dependeram de um decreto ministerial para por fim à mamata dos burocratas da UNE e UBES.

A aventura continua... (a propósito de algumas perdas)

Desde o número passado, três camaradas saíram de nosso coletivo: Patrick, André e Roberto.

Patrick, chegamos à conclusão da impossibilidade de sua permanência formal em nosso coletivo, devido às ausências reais nas reuniões, nas atividades práticas e nos movimentos sociais.

André, por divergências teóricas e práticas muito sérias e radicais. É o que explicaremos a seguir.

A primeira divergência. Ele questionava a necessidade da existência do nosso coletivo como um coletivo específico; o que tornava desnecessária a existência de um coletivo programático, enquanto um esforço específico e como parte dos outros esforços de luta e auto-organização d@s demais proletarizad@s, era – nas argumentações de André – o fato de que a necessidade da crítica teórica só poderia ser cumprida a partir dos espaços da vida cotidiana, espaços esses estruturados a partir de interesses parciais que mobilizem de fato as pessoas; assim, a partir desses espaços, o diálogo com tod@s @s que ali estivessem interessad@s iria constituindo uma crítica mais ampla da sociedade capitalista.

Ora, o que argumentávamos era que, sem um esforço específico de crítica da própria vida cotidiana, tal com ela está estruturada no capitalismo contemporâneo, enquanto cotidianidade alienada, não seria possível "avançar" do "parcial" para uma crítica "mais ampla" do sistema (em aspas, os termos do próprio André).

Isso significa, segundo pensamos, que são necessários sim esforços individuais e coletivos, esforços práticos-teóricos, de negação da cotidianidade dada; e, portanto, de uma relação crítica inclusive (e muitas vezes principalmente) com os "interesses parciais" que mobilizam muitas vezes as pessoas. Está claro para nós que o que nos move para a luta está sempre na vida cotidiana (só os cretinos da velha esquerda estatista movem-se por questões situadas nas esferas separadas da política, do Estado e da ideologia); e também que qualquer questão da vida cotidiana, no capitalismo contemporâneo, tem relação com a totalidade da vida alienada (e exatamente por isso a crítica teórico-prática de totalidade com a qual queremos contribuir não é nunca uma crítica especializada, fora da vida cotidiana). Mas isso de modo algum obscurece (muito pelo contrário, esclarece) o fato inegável de que é no terreno da vida cotidiana mesmo que todas as ilusões e mentiras do sistema encontram seu terreno; e, portanto, a crítica da vida cotidiana (também em sua fragmentação, seu imediatismo, seu reformismo inato...) é uma necessidade para quem quer de fato modificá-la. Só assim justificam-se os esforços individuais e coletivos (como o nosso) que buscam contribuir tanto teórica quanto praticamente para que as negações cotidianas das alienações constituam-se numa crítica de totalidade, potencializando o diálogo prático que torna isso possível.

Segunda divergência. Essa, de cunho mais imediatamente prático, dizia respeito ao que entendemos por "diálogo". Como tod@s @s que nos conhecem sabem, temos defendido que a verdadeira superação do vanguardismo passa pela compreensão de que a nossa relação umas/uns com @s outr@s é dialogal, e se dá no diálogo prático, no diálogo comum de recusa do conjunto das alienações. Assim, alguns camaradas começaram a manifestar divergências em relação à participação do André no movimento estudantil, particularmente em sua participação em um grupo de estudantes do curso de economia da UFC, considerado por ele como "autônomo", ainda que dele participasse gente ligada aos partidos da esquerda oficial (PT, no caso); ali se estaria experimentando, como exemplo, discussões em torno de questões de interesse comum, num "diálogo amplo", que possibilitava – segundo avaliava o André – chegar-se a conclusões críticas quanto ao sistema e às formas representativas e autoritárias do movimento estudantil. Para @s demais camaradas, ali precisamente estava se realizando (e desenvolvendo) uma estranha concepção sobre o diálogo: o falso diálogo, no qual os interlocutores até podem chegar a conclusões comuns bastante radicais no plano das idéias, mas que não têm nada a ver com o que eles fazem na prática em suas vidas; enfim, uma troca de idéias, e não um verdadeiro diálogo, com implicações práticas (em outras palavras, a ideologia do diálogo contra o diálogo prático). Que os demais camaradas tínhamos razão, desde o nosso ponto de vista, demonstrou-se no Encontro Nacional de Estudantes de Economia (ENECO, realizado em julho/2001, em Fortaleza), preparado por esse grupo "autônomo" e para o qual foi convidado a dar "palestras" (pois as palestras continuaram, reproduzindo a hierarquia dos que falam e dos que ouvem) todo tipo de gente ligada ao espetáculo (políticos e economistas burgueses, dirigentes da esquerda oficial etc).

Terceira divergência (e que está no fundo de todas as outras). Num Seminário interno do coletivo, realizado em Janeiro, na discussão sobre a questão da sabotagem no trabalho, André defendeu que nossa postura não deveria ser a de apoiar a sabotagem, mas a de "levar aos operários a idéia de que eles (ao invés de sabotá-la) deveriam apropriar-se da produção"; pois, segundo argumentava, a produção de valores de uso deveria ser defendida e não destruída (pela sabotagem). O que @s outr@s argumentamos foi: 1) não podemos opor à prática real d@s proletarizad@s uma idéia qualquer (mesmo que seja a boa idéia de apropriação coletiva da produção), porque em nenhum caso nós – @s que queremos mudar o mundo – podemos partir de idéias, mas sim sempre da prática; nessa posição do André manifestava-se, segundo nossa avaliação, uma postura ideológica (com desvios professorais e, portanto, vanguardistas), postura tão ideológica quanto aquela que se manifestava na sua compreensão sobre o "diálogo" e a "autonomia"; argumentamos também que nosso ponto de partida, não sendo as idéias, mas a prática, deveria ser sempre a prática que nega (isto é, as lutas reais) e nunca uma idéia positiva qualquer sobre uma outra forma de as coisas serem feitas (as proposições só podem ser construídas no diálogo prático e, portanto, elaboradas por aqueles que estão na prática dialogando). 2) @s proletarizad@s não temos nada a ver com os valores de uso que são produzidos pela produção capitalista, pois essa é uma produção que não é voltada para a satisfação das necessidades (pois ao capital pouco importa a utilidade real das mercadorias), é uma produção organizada segundo os critérios econômicos e técnicos da hierarquia, do mando/obediência e da alienação; e que, portanto, ao expropriarmos as forças produtivas atualmente monopolizadas pelas empresas capitalistas, teremos que reorganizar radicalmente a produção: o quê produzir, para que produzir e como produzir. O que, pensamos, nos levará sem dúvida, se quisermos ir à radicalidade da crítica da relação utilitária com a natureza, a não só deixar de produzir inúmeros valores de uso nocivos ao planeta como a destruir linhas inteiras de produção em função disso. A questão, agora como num "futuro autogerido" é a de QUEM decide. E a sabotagem nada mais é do que o decidir não-produzir o que é decido pelos outros, pela lógica autonomizada da produção de valor.

Exatamente nessa discussão, frente a tão grandes e profundas divergências, ficou clara – para tod@s nós, inclusive para ele – a impossibilidade da permanência do André em nosso coletivo; opinião manifestada por alguns camaradas durante a discussão e reiterada, pelo próprio André, ao final do Seminário, quando ele então comunicou o seu desligamento.

Quanto ao Roberto, ele manifestara desde o nosso 4º Encontro (abril-maio/1999), profundas divergências com os rumos que a partir dali tomamos. Apesar de concordar com nossa avaliação do capitalismo contemporâneo (mundialização do capital, perda efetiva de poder regulativo dos Estados-nação etc.) e algumas das suas conseqüências práticas (o caráter mundial da revolução, a impossibilidade da autonomia nacional etc.), Roberto tem sérias dúvidas (que se manifestam às vezes como discordâncias) com nossas perspectivas quanto à capacidade das experiências de auto-organização d@s proletarizad@s de se imporem como fundamento de uma sociedade sem hierarquias; fundamentalmente, ele desacredita da possibilidade de "lutar contra a alienação sem meios alienados", isto é, sem representação, sem dirigentes, sem partidos... Mesmo após o 4º Encontro, Roberto manteve sua militância normalmente durante alguns meses, buscando – segundo disse – "digerir" as nossas novas posições; assim, chegou a escrever, no número 10 de nossa revista, o artigo (que só saiu sem assinatura por erros gráficos) intitulado "Recomeçar tudo desde o princípio", no qual é feita uma profunda crítica da ideologia, do tradicionalismo, do monolitismo no movimento operário etc. No entanto, nos últimos meses, ele vinha se mantendo completamente ausente das atividades do coletivo; quando então foi instado, pelo telefone, a posicionar-se frente a essa ausência, Roberto pediu desligamento argumentando precisamente a permanência das divergências. Segundo nós avaliamos à época, tais divergências se mantiveram não apenas pelas divergências no plano das posições teóricas, mas também devido à sua ausência nas experiências práticas nas quais nós temos participado no último ano e meio (ausência que, precisamente, reforça o horizonte tradicional ao qual Roberto se prende).

No capitalismo contemporâneo não há lugar para a aventura, pois este é o capitalismo da passividade generalizada, do planejamento e controle da quase totalidade da vida cotidiana pelo mercado inevitavelmente monopolizado e seu sistema de Estados (controle e planejamento para o qual, diga-se, a experiência bolchevique foi pioneira). Talvez a maior prova de que vivemos em um mundo em que a aventura não é mais possível, senão como experiência de luta contra ele, esteja no fato de que a referência corrente a ela ou é negativa (o aventureiro é irresponsável, descomprometido...) ou vem embalada como uma mercadoria qualquer e é, assim, posta à venda (a falsa aventura dos pacotes turísticos, dos parques temáticos a la Disneyworld, Beto Carrero, dos esportes radicais etc.).

Mas a aventura sempre foi, nas sociedades anteriores, o meio de encontro dos indivíduos com a história, com o tempo bem utilizado, coisa de gente que sabe que é mortal, finito e, por isso, quer fazer da sua vida uma grande coisa... mesmo nas sociedades muito antigas, como as sociedades escravistas européias, a aventura (e, portanto, a história), que eram negadas para @s oprimid@s, eram vividas parcialmente pelos dirigentes (nas descobertas, nas guerras...). @s oprimid@s, estes só se aventuravam quando se revoltavam... e não é pouco o número de exemplos de revoltas, bandos, bandid@s sociais que também quiseram (e conseguiram) ter acesso à aventura, à história! Que o digam os Ludditas, que sabiam reconhecer em Robin Hood a aventura da negação...

É que a história, como a verdadeira aventura, é sempre uma aposta. Uma aposta como aquela que fazemos cotidianamente milhões de proletarizad@s; na completa insegurança de vida, fazemos permanentemente da vida uma aposta, uma aventura. Mas é mais ainda o caso daqueles que, fazendo de sua condição de vida um projeto de vida, lançam-se à maior das aventuras: a aventura de, sem ter "a certeza na frente" nem "a história na mão", apostar em fazer a história, o que só é verdadeiramente possível quando não se conta com a intervenção dos deuses ou com a certeza das ideologias. Nem a ideologia da vida cotidiana (com seu reformismo inato, seu diálogo inconseqüente), nem a ideologia da liberdade no Estado (seja o Estado mesmo, no modelo jacobino-bolchevique, seja o Estado sempre presente em toda hierarquia: a do partido, a da direção, a do representante...).

Não somos o povo brasileiro!

Declaramos solenemente, a fim de contribuir para a consciência histórica, a qual só @s proletarizad@s revolucionários, na luta contra todas as hierarquias, podem verdadeiramente possuir: não somos o "povo brasileiro"! Somos, isto sim, uns bandos de refugiados – expuls@s de nossas terras pelos invasores europeus, vindos à força escravizad@s da África, banid@s da Europa e da Ásia pela fome, pela guerra ou pela perseguição religiosa e política – nessas terras chamadas outrora de Pindorama, terras ocupadas antes pelo Estado português e agora pelo Estado brasileiro, que nada mais é do que o poder político dos que até agora venceram: o capital, desde o início internacional e que agora é capital monopolista mundializado. O Brasil é uma invenção dos inimigos! E uma invenção que nos custou muito: colonização, escravidão e escravidão assalariada! Se foi a construção do mercado e do Estado que nos impôs essa situação, não podemos encontrar nossa emancipação em nenhuma forma de mercado e de Estado! Não queremos um Estado nosso; queremos, isto sim, a abolição de todos os Estados e a construção consciente da comunidade humana universal, comunidade da diferença e do diálogo.

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