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Para sempre sindicatos...

enquanto houver trabalho assalariado e capital!

Proletarizad@s contra a corrente

"VÓS QUE ENTRAIS, ABANDONAI TODAS A AUTONOMIA"

Dizeres à porta do emprego, financiados pelos monopólios e empunhados pelos sindicatos

(Parafraseando Dante, A divina comédia, O inferno, canto III)

Não é simples discutir sobre os sindicatos. Eles continuam sendo enamorados por muit@s revolucionári@s dos cinco continentes, ainda mais porque, à primeira vista, os sindicatos tenham desenvolvido lutas importantes para a experiência histórica d@s proletarizad@s. E ainda há a barreira da ideologia, daquela ideologia sindicalista, que, sob uma variedade de enfoques – do amarelo ao negro, do pálido ao esquálido... – interpretam esses tão decantados instrumentos organizativos como virtude ou como decrepitude da luta de classes, mas quase sempre afirmando-os idealmente, seja sob a nostalgia de um áureo passado revolucionário, seja sob um veredicto "realista" a respeito de suas limitações enquanto "organismo de luta econômica/imediata da classe" (aqui, bem entendido, para justificar em seguida a superioridade de um "organismo de luta política/histórica da classe", quase sempre o partido político, mas também às vezes os Conselhos Operários).

Crise dos sindicatos? A crise do capital e a recomposição de classe.

Mas tem-se ouvido muito por aí que os sindicatos estão aniquilados ou mortos, seja por inanição (aqueles que os querem revolucionários!), seja por integração degradante (os social-democratas e reformistas de toda espécie!). Mortos?! De jeito nenhum: estão vivos e, dependendo do espécime, de sua capacidade de adaptação na arena (r)evolutiva do capital, bem ou mal das pernas! Os sindicatos estão bem Vivinhos da Silva e cumprem um papel central na esfera política das relações de produção capitalista.

Algumas posições revolucionárias afirmam a inutilidade atual dos sindicatos enquanto instrumentos de luta da classe, defendendo nas entrelinhas que foram úteis desse ponto de vista "apenas" quando a organização do trabalho e a composição estrutural do proletariado não estavam ainda debilitadas pelas novas mudanças do capital. Uma crescente "substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, consolidado nas máquinas", anularia a centralidade do trabalho na luta revolucionária de classes, provocando uma crise tão grave nos sindicatos a ponto de eles perderem a importância. Mas acontece que aqui tanto premissa quanto conclusão são falsas.

A questão do trabalho não só não perdeu sua centralidade, como se tornou ainda mais importante, pois a proletarização forçada da imensa maioria da humanidade aumentou quantitativamente. O que se deu em relação ao proletariado fabril, que classicamente se espalhava nestas unidades fundamentais de produção de valor, isto é, a sua diminuição relativa, foi um movimentado complementado, ao mesmo tempo, com a disseminação de novos setores de produção e ainda pela precarização de sua maioria (do proletariado fabril) fundada numa transformação radical da divisão social do trabalho assalariado. Hoje, o núcleo fundamental da produção de valor, localizado nas grandes corporações transnacionais incorpora em seu interior uma complexa teia de atividades e setores produtivos, certamente numa diversidade de experiências absolutamente fundamental para a nossa contituição enquanto sujeitos da negação do capital.

Sem dúvida, estamos aqui diante de uma questão prática e teórica fundamental. De fato, os movimentos nas relações de classe que estabelecem as mutações na sua composição, impuseram, já há alguns anos, quanto à nossa composição, à d@s proletarizad@s, a incorporação de inúmeros setores não diretamente ligados, classicamente, à produção de valor, particularmente com a revolução técnico-científica e a criação de novos setores de produção inimagináveis enquanto diretamente produtores de valor há algumas décadas. Assim, a produção científica, por exemplo, não se encontra em relação com a produção de valor, no capitalismo contemporâneo, de modo mediato, como ocorria num passado recente, mas de modo imediato mesmo. Se em nenhum momento, fomos @s mesm@s enquanto classe, pois o que é próprio das relações capitalistas de produção é sua transformação contínua, acompanhando ou impulsionando as modificações nas forças produtivas, tais mutações têm-se acelerado na medida mesma do ritmo da aceleração da capacidade produtiva do capitalismo contemporâneo. Isto é assim não apenas por uma questão econômica (a concorrência entre os próprios capitalistas, que os leva a cada qual aprimorar continuamente seu aparelho produtivo), mas pelo próprio movimento das lutas de classes, pela insubordinação d@s trabalhador@s, pela resistência à hierarquia e ao disciplinamento do trabalho assalariado ou até mesmo pela luta por melhores salários. O fato é que, hoje, profundas modificações realmente ocorreram na estrutura da nossa classe, em termos das relações jurídicas de trabalho (com a flexibilização e precarização), em termos da composição social d@s assalariad@s (com o assalariamento de inúmeras funções do aparelho produtivo do capital, além de criação de outras novas), o que implica novas hierarquias no interior da classe d@s proletarizad@s em substiutição às antigas e também as novas formas técnicas e disciplinares do trabalho (novas formas de organização da produção, reestruturação produtiva). Assim, quando dizemos que a classes d@s proletarizad@s manteve-se e cresceu, isso só é verdade se se compreende todas essas mudanças, mudanças que ocorreram e vêm ocorrendo como parte da luta de classes. Por outro lado, isso implica também que @s proletarizad@s somos uma classe cuja composição está sempre se alterando, do ponto de vista econômico-social; assim como nossa "identidade" enquanto classe (que não pode ser nunca uma identidade positiva, que aceite essas condições sociais que nos identifica enquanto uma classe que é obrigada a vender sua força de trabalho), enquanto uma classe em luta, é produto dessas mesmas lutas.

Uma coisa é certa: sem trabalho assalariado, vivo, em carne e osso, não pode haver capital. As máquinas não trabalham por si... A superação do trabalho abstrato (que cria valor de troca) só é possível, na prática, com a destruição do assalariamento. Isso se fará apenas quando a classe d@s proletarizad@s se constituir com força e organização autônoma capaz de sabotar definitivamente a produção de mercadorias, bem como toda a dinâmica e estrutura social, cultural, política que lhe é correspondente, e impor a experiência da autogestão generalizada da vida.

Quanto aos sindicatos (em inglês, trade-unions, "uniões de comércio"), eles nunca perderão a importância no contexto da sociedade baseada no trabalho assalariado, gerador de mercadorias. E enquanto este existir, serão necessárias representações políticas e sociais das classes em luta a fim de regular o melhor modo de funcionamento da máquina produtiva capitalista e sua sociabilidade. A burguesia não pode garantir o seu consenso sem estabelecer alianças (às vezes impostas pelas armas, outras pela alienação própria ao trabalho assalariado) com o proletariado, daí a pertinência ainda atualíssima dos sindicatos. Uma olhadela mais crítica e "enfezada" na história do movimento d@s proletarizad@s permite afirmar que a existência e a fortaleza da organização sindical depende sempre e diretamente da mobilidade do capital, logo, da manutenção e reprodução (alteradas) do trabalho assalariado, pois a forma e as condições deste são os objetos básicos de barganha e mobilização fundamental dos sindicatos; assim, quando falamos aqui em "capital" estamos falando de uma relação social contraditória, na qual as lutas de classes – como assinalamos acima – determinam o modo de investimento do dinheiro-capital e, portanto, a imposição que este buscará impor ao trabalho assalariado.

Que nos perdoem os valorosos anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários por este "excesso", mas os sindicatos nunca foram, não são e nunca poderão ser os instrumentos de poder e autogestão d@s proletarizad@s. Enquanto os anarco-sindicalistas sempre se esforçaram para organizar sindicatos independentes que buscassem transformar cada conflito nos locais de trabalho em uma luta pelo controle sindical "autogestionário" dos meios de produção, as esquerdas e extremas-esquerdas do sistema desenvolveram a tradição de atuar nos sindicatos, mesmo os mais reacionários (fórmula leninista), pela conquista de suas direções e sob a tutela dos seus partidos, ainda que contassem com a resistência dos "esquerdistas" 1, que defendiam a construção de uniões operárias independentes dos sindicatos tradicionais, aproximando-se em certa medida dos métodos dos anarco-sindicalistas. Vê-se que, sempre e a qualquer custo, tratou-se de privilegiar os sindicatos, salvo a tradição conselhista 2 que, além de prender-se a esquemas ideológicos, não conseguiu travar uma batalha conseqüente em oposição ao estatismo bolchevista 3 que se impunha à época. Assim, no século XX, sobretudo, parte substancial da luta d@s proletarizad@s baseou-se na concepção e prática sindical, sendo pólo de atração para muitas vanguardas da política de esquerda.

Na época do taylorismo/fordismo 4, os sindicatos baseados em operários de ofício nas manufaturas (sindicatos que facilitavam a atuação anarco-sindicalista) foram suplantados pelos sindicatos operários de massa, compostos de proletarizad@s massificad@s, concentrados em grandes cadeias de produção e cujas subjetividades em relação ao processo de trabalho foram anuladas em benefício de um controle integral de suas vidas produtivas pelo capital. Esse operariado industrial "clássico", era de grande número dentre todos @s proletarizad@s e se constituía numa engrenagem essencial para o funcionamento da máquina capitalista, mesmo que ela contasse com um numeroso exército industrial de reserva (desempregados). Evidentemente, essa força numérica do operário-massa foi um temor para os monopólios devido à sua capacidade de mobilização política e social e um chamariz para que as esquerdas baseassem suas políticas na disputa de direção ou de hegemonia nos sindicatos. A experiência demonstrou quão integradora foi essa orientação da esquerda, não obstante a realidade aparentar que seria ao menos provável a transformação revolucionária dos sindicatos, confederações e centrais sindicais sob a base de um sindicalismo de base, combativo, independente etc. Não foi à toa que nesse contexto histórico muitas greves heróicas ocorreram, mas, sob a perspectiva sindical, por mais radicalizadas que fossem, elas acabaram, quando muito, no abrandamento temporário do sofrimento decorrente da superexploração do trabalho assalariado (mantido intocado, é claro, o próprio). Afinal, para isso existem os sindicatos... Mas é preciso alertar que a classe experimentou também as chamadas greves selvagens, baseadas na autonomia operária, às vezes em Conselhos Operários e assembléias autônomas, como se viu desde a insurreição húngara de 1956 até o movimento operário autônomo nos anos 70 na , passando pelo importante movimento de ocupações de fábricas em maio de 68 na França. Tais greves não somente se colocaram contra o trabalho assalariado mas, sobretudo, enfrentaram os sindicatos e os partidos políticos, que se aliaram ao capital monopolista para sufocar a insubordinação d@s proletarizad@s.

Os sindicatos, fortalecidos pela própria concentração operária nas grandes empresas tayloristas-fordistas e alicerçados na horda de especialistas sindicais que lhe é inata, selaram um compromisso de relaxamento das tensões de classe em troca de um "bem-estar social" para um grande número d@s proletarizad@s; bem-estar que, a partir da crise do modelo taylorista-fordista, que coincidiu com o início da atual tendência recessiva do capitalismo (desde o os anos 70), entraria em franco declínio. Em seu tempo, esse compromisso fordista surtiu bons efeitos nos países centrais do capitalismo, pois possibilitou garantir um nível razoável de consumo para parcelas d@s proletarizad@s ali localizad@s, com o evidente consentimento d@s própri@s (por um certo período), consentimento muito bem trabalhado por direita, centro, lateral, esquerda, etc do capital.

Mas em Estados como o brasileiro, por exemplo, cujo auge das lutas sindicais se deu nos anos 80, a busca por esse compromisso nasceu moribunda e fadada a beneficiar apenas uma minoria d@s proletarizad@s, pois tanto houve sempre uma dificuldade histórica de incorporar amplas parcelas d@s proletarizad@s aqui à luta e organização sindicais, como já se operavam em nível global as mudanças estruturais do processo de organização do trabalho (toyotismo, qualidade total, just-in-time, terceirização etc) e as corporações transnacionais já começavam a estudar e concretizar um novo "compromisso" que visava a garantia do trabalho assalariado movendo a produção econômica fundamental a fim de reverter a queda acentuada das taxas médias de lucro, ao mesmo tempo em que redirecionava o papel dos sindicatos.

Em escala global, a reestruturação produtiva do capital e o compromisso sindical-monopolista foram fundamentais para impor a derrota às experiências de autonomia operária. Nesse processo foi imposta uma fragmentação sem precedentes d@s proletarizad@s, separando nitidamente os operários sindicalizados dos chamados precarizados, facilitando o controle sindical e a repressão ao movimento revolucionário.

O que tem sido esse redirecionamento, que conta com a colaboração dos sindicatos? Trata-se agora de ajudar a convencer a minoria operária concentrada nos núcleos centrais da produção a otimizar seu trabalho a fim de aumentar a produção de mais-valia, semeando a idéia de cooperativismo, co-gestão participativa, programas de qualidade total e banco de horas trabalhadas (quem não se lembra da famigeradas Câmaras Setoriais da CUT brasileira?) 6, e paralelamente, em conjunto com ONGs, partidos políticos e outras entidades da "sociedade civil", desenvolver programas sociais de "cidadania" e de micro-integração no mercado (cooperativas autogeridas locais, micro-empresas alternativas, etc) das agora majoritárias parcelas descartáveis d@s proletarizad@s; aliás, o que foi, por exemplo, o Fórum Social Mundial, senão um momento ímpar desse novo compromisso? Assim, a diminuição do poder sindical nos locais de trabalho foi compensada com a extensão do campo de ação sindical a outras esferas da chamada sociedade civil ou da "política cidadã".

Não havia outro caminho para as corporações transnacionais e seus instrumentos decisórios (FMI, Banco Mundial, G8, etc) a não ser mudar o conteúdo desse compromisso histórico permanente com os sindicatos, mesmo que isso custasse muitos postos de aliados sindicalistas na devassa que teria que acontecer. E foi o que aconteceu, à revelia dos sindicatos: tratou-se de uma imposição e não mais de um acordo que por vezes era forjado após greves localizadas ou gerais. É compreensível a revolta de alguns sindicalistas com essa situação, que ocorreu principalmente nos últimos anos 80 e 90: afinal, foram muitos @s trabalhador@s despedid@s e/ou terceirizad@s, afetando as gordas contribuições e impostos sindicais que alimentam o especialismo de alguns parasitas, além do que, as mais modernas legislações trabalhistas já permitem negociações diretas de preço, condições, etc da força de trabalho, sem a intermediação dos sindicatos. Mas o que as corporações fizeram foi apenas alertar aos sindicatos da necessidade de se adaptarem aos novos tempos de reestruturação produtiva, pois, tanto a exclusão de milhões de seus postos de emprego é um fato irreversível e de vida ou morte para a possibilidade do capital resolver sua crise orgânica, como é imperativo que não se repita mais uma retomada e generalização da autonomia operária que começara a erguer bases sólidas para solapar o capital e o trabalho assalariado. E nós sabemos o que os sindicatos escolheram, não é verdade ?

As lutas d@s precarizad@s e os sindicatos...

As corporações impõem a precarização da imensa maioria d@s proletarizad@s, quebrando-lhe direitos trabalhistas conquistados com duras lutas, submetendo-@s à terceirização ou a subcontratações, trabalhos eventuais ou em tempo parcial, além do desemprego estrutural. Tem sido cada vez mais comum trabalhadores que possuem mais de um subemprego, por ser a única forma de manter-se sobrevivendo, mesmo às custas da superexploração, de baixos salários e de nenhuma garantia trabalhista legal. O trabalhador precarizado é forçado a dispor ainda mais do tempo de sua vida para os capitalistas, que, por essa mudança no processo de organização do trabalho assalariado, diminuem substancialmente custos de produção em escala global, afetando negativamente o capital variável (salários) e assim gerando reservas que permitem o investimento nas novas tecnologias manuseadas pelos laboratórios centrais de produção.

Os sindicatos oficiais procuram administrar essa situação através da negociação por cima e com cartas marcadas, sem ou com a mínima participação d@s precarizad@s. Os capitalistas, por sua vez, negam-se aberta e intransigentemente a "desprecarizar" a maioria proletária e dificultam assim qualquer acesso dela à estrutura e negociação sindical. Alguns sindicatos procuram sindicalizá-la, buscando com isso apenas aumentar a contribuição sindical e integrá-la pela promessa de lutar pela sua re-inserção melhorada na negociação do preço da força de trabalho. Os sindicalistas "radicais", inconformados, têm apenas esboçado uma reação verbal, pois a esquerda sindical passa ao largo de qualquer possibilidade de auxiliar a organização d@s precarizad@s e continua na sua infindável e estéril disputa por direções sindicais. Os próprios sindicatos, cujas direções são da extrema esquerda, pouco ou nada fazem (porque não querem e/ou não podem) em relação a essa situação. Basta observar que a adoção do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador)7 vem sendo cada vez mais aceita por sindicatos que se auto-rotulam combativos ou de oposição à direção majoritária da CUT brasileira. A miséria do movimento sindical é um fato consumado na Pindorama e já seria um definitivo golpe em qualquer pretensão revolucionária nesses sindicatos de Estado, se não fossem os apegos dogmáticos das esquerdas e extremas-esquerdas oficiais às suas ideologias. Mas há gosto para tudo; até mesmo para cadáveres...

Muitas frações revolucionárias honestas e combativas que não se adaptaram às novas funções determinadas pela atualização do compromisso entre trabalho assalariado e capital (ditado pelas corporações transnacionais) têm apontado a necessidade do sindicalismo concentrar esforços na mobilização d@s proletarizad@s precarizad@s. A situação estaria propícia, segundo alguns, para reavivar a experiência anarco-sindicalista no mundo e iniciar por vias inteiramente independentes uma alternativa concreta ao sindicalismo de Estado. De fato, há um terreno fértil para a discussão com essa maioria proletarizada devido ao desprezo com que é tratada pela maioria dos sindicatos de Estado. O fato do "trabalhador eventual", por exemplo, estar obrigado a escolher entre aceitar a supressão de direitos trabalhistas para permanecer empregado ou denunciar sua situação e ser despedido é um fator complicador que dificulta a organização nos locais de trabalho; mas, sabemos, complicadores existirão sempre na luta de classes, que não é um passeio ameno.

Entretanto, as mediações características dos esforços sindicais tenderão sempre, também aí, a fazer com que a centralidade da luta nos locais de trabalho esteja no que é culturalmente já visto pela própria classe como o mais útil e viável de imediato, segundo sua experiência sindical, ou seja, na busca pelo reconhecimento e garantia legal de direitos trabalhistas, em alguma forma de "socializar" as benesses salariais e de consumo agora "privilégios" de uma "elite estável" responsável pela produção central das mercadorias. A lógica sindical do sistema da passividade é exatamente desenvolver junto à classe esse contentamento. E são as próprias experiências iniciais de lutas d@s precarizad@s, atualmente baseadas em alguns países da Europa e nos EUA, principalmente, que demonstram as limitações da luta sindical mesmo sob aquele redirecionamento. Por exemplo, a luta dos trabalhadores da UPS (a maior companhia postal dos EUA) no ano de 1997, uma das primeiras greves movidas por precarizad@s do pós-fordismo, teve como reivindicação central a mudança dos contratos de tempo parcial para contratos a tempo integral. Tratou-se ai de lutar por uma reinserção melhorada da força de trabalho assalariado no processo produtivo, conteúdo aliás que as lutas sindicais d@s precarizad@s – como talvez não pudesse ser de outra forma – vêm assumindo de modo imediato. Algo, aliás, perfeitamente esperável, dada a necessidade de defesa de suas condições de existência e a destruição da memória da experiência de luta autônoma coletiva durante os últimos anos; mas, principalmente, bastante óbvia quando o horizonte da luta é essencialmente sindical, independentemente de quem seja a camada social da classe que esteja protagonizando-a.

As propostas rebeldes, radicais, anarco-sindicalista...

Vamos insistir: os sindicatos são peças institucionais totalmente integradas e voltadas para a preservação da relação social dominante. Tentar convertê-los em órgãos de contra-poder é um contra-senso face à própria essência dos mesmos. A experiência histórica da gloriosa Revolução Espanhola, que constituiu uma institucionalidade revolucionária baseada nos sindicatos, deveria ser muito bem estudada como a mais radical demonstração fática disso.

As trade-unions e outros modos de união operária, considerados os precursores dos sindicatos, constituíram-se em suas origens como organismos diretamente ligados ao cotidiano da classe operária. Esses organismos adquiriram formas horizontais de organização não porque estiveram ligados ideologicamente a tendência ou representação A ou Z, mas porque esta foi uma característica das primeiras organizações sociais embrionárias d@s proletarizad@s, conquistadas duramente pelos seus próprios esforços e experiências.

Naquele momento, particularmente na América e Europa, pôde se desenvolver um contraditório "sindicalismo revolucionário", que estimulava a auto-organização operária em todos os aspectos da vida cotidiana, preocupando-se em desenvolver atividades criativas nos diversos espaços de vivência social da classe, como festas, criação de Escolas livres, fundos de greve, autodefesas, dentre outras, ao mesmo tempo em que na luta contra a exploração dentro das fábricas obrigava-se a concessões perigosas, pois negociar aceitando a existência de representações eram quase sempre os desfechos das formas de luta realizadas. O crescimento vertiginoso do movimento operário e, principalmente, a generalização das lutas grevistas foram fatores que desencadearam um debate acerca do futuro do movimento operário. Os partidos e os sindicatos de representantes se tornaram os principais organismos de luta econômica e/ou política da classe (dependendo aqui dos enfoques ideológicos de anarquistas, bolchevistas, etc). Em relação aos sindicatos, o fato histórico é que a potencial crítica de totalidade e o "espírito comunal" desenvolvidos em suas origens acabaram cedendo a uma crítica parcial e marcadamente corporativa voltada praticamente para a regulação da venda da força de trabalho assalariado. Os sindicatos incorporaram-se à esfera política, um espaço essencialmente de decisão e controle separado e acima da horizontalidade e espontaneidade da experiência cotidiana d@s proletarizad@s.

Não se tratou, essencialmente, de subordinação dos sindicatos aos partidos, mas de ambos à lógica das separações, particularmente a da esfera separada da política, pois mesmos os anarco-sindicalistas, como parcela organizada, minoritária, tentavam trazer @s proletarizad@s em seu conjunto para sua perspectiva de revolução social a partir da organização sindical, o que levou tanto a disputas por sua hegemonia como à legitimação de sua "representação" no movimento operário, características próprias da luta política. Entretanto, é inegável o crescimento da influência social-democrata (e na seqüência, em sua feição bolchevique) no movimento operário a partir do final do século XIX, o que fez de fato com que a maioria dos sindicatos se subordinasse aos partidos. Não é de se admirar como esse fenômeno se cristalizou como cretina tradição das esquerdas oficiais. Todos vêem claramente que até hoje grande parte dos partidos de esquerda têm suas bases de sustentação nos sindicatos, no controle de suas máquinas para a propaganda e legitimação de suas políticas "reformistas" ou "revolucionárias".

Mas @s proletarizad@s experimentaram situações durante o século XX em que aceitaram passivamente ou foram obrigad@s a ter que escolher quem melhor lhes representariam sindicalmente: se as minorias radicais (anarquistas, as vertentes comunistas) ou se as maiorias moderadas. A burguesia conseguiu o feito de incorporar o movimento sindical d@s proletarizad@s à sua lógica estato-mercantil, à política. Tal feito sobrevive até hoje. A representação política democrática ganhara tremenda força com a adesão dos sindicatos e consolida, desde aquela época, a lógica perniciosa da passividade: @s proletarizad@s puderam ir serenamente para seus dormitórios e lazeres, pois os sindicatos lutariam por el@s e precisariam apenas de seu apoio e de que fossem mantidas as contribuições sindicais em dia...

Sem dúvida, entre @s proletarizad@s sempre existiram as frações descontentes que se rebelaram contra o aburguesamento dos sindicatos. Para os conselhistas e comunistas de esquerda, por exemplo, tratava-se mesmo de negar os sindicatos para construir organismos operários independentes que reconhecessem o sistema dos soviets e reproduzissem os seus métodos e objetivos. De princípio, parecia ser uma posição correta (na realidade havia várias posições que se aproximavam entre si, algumas das quais admitindo ainda a importância do partido revolucionário ou da vanguarda política), mas precisaríamos aprofundá-la em outra oportunidade, tendo em vista que era muito mais baseada na tentativa de doutrinarizar a experiência real da classe, transformando-a numa ideologia 8.

Os anarco-sindicalistas foram, sem dúvida alguma, um dos mais bem organizados setores rebeldes e radicais do movimento operário. Deve-nos interessar nesse momento em que debatemos sobre os sindicatos, entender o anarco-sindicalismo, especialmente por dois motivos: 1° ) pelo fato de considerarem o "sindicato autogestionário" o organismo por excelência de poder da sociedade comunista libertária e 2Ί) pela Revolução Espanhola ter conseguido, em grande escala (atenuando-se pela situação de guerra civil) materializar no fundamental a perspectiva anarco-sindicalista.

A doutrina anarco-sindicalista baseou-se mais profundamente no socialismo preconizado por Proudhon, segundo o qual a propriedade privada deveria ser socializada. Tal socialização significaria uma redução significativa da propriedade privada (transformando-as em pequenas propriedades coletivas) e uma espécie de livre concorrência (pois se manteriam a produção de mercadorias, o dinheiro na forma de bônus-trabalho e até mesmo uma espécie de "Banco do Povo") que fosse capaz de suprimir os privilégios do capital e impedir a realização do lucro, fazendo com que cada qual recebesse o "fruto integral do seu trabalho". Esse mercado "controlado" e extremamente reduzido e fragmentário tornaria desnecessária qualquer direção centralizada ou Estado. Proudhon imaginou essa possibilidade numa época em que predominavam os artesãos e os operários de ofício nas unidades de produção capitalista. Durante a Revolução Espanhola, os anarco-sindicalistas se viram forçados a tentar aplicar as idéias de Proudhon convivendo com o domínio dos monopólios na economia mundial e seus operários-massa.

O anarco-sindicalismo defendia que os sindicatos deveriam controlar a produção, bem como regular a circulação e o consumo dos bens. Cada unidade de produção, grande ou pequena, teria o seu sindicato para a tomada das medidas necessárias a fim de garantir a realização do comunismo libertário segundo a perspectiva acima descrita. A federalização dos sindicatos garantiria o processo em escala macroeconômica.

O resultado disso tudo foi que o a produção de mercadorias e o sistema salarial que lhe é necessariamente correspondente mantiveram-se intocados durante a revolução espanhola, A ilusão de redução da grande empresa e de supressão do lucro pelas redes econômicas autogestionárias não resistiu à realidade, já que isso era impossível de acontecer diante do domínio absoluto do sistema mundial produtor de mercadorias, além do fato de que mesmo a "pequena" produção de mercadorias, desde sempre hierarquizada, gera cedo ou tarde novas e velhas desigualdades sociais.

Entretanto, uma das maiores demonstrações da Revolução Espanhola foi o fato da apropriação da produção pelos sindicatos não ter impedido a cristalização de um Estado; pelo contrário, facilitou a estatização da revolução, já no interior mesmo de seu setor revolucionário (sem dúvida nenhuma, os anarquistas). As trocas de bens continuaram a ser feitas mediante o dinheiro, um terceiro ente abstrato e incontrolável, que requeria portanto um instrumento político, indireto, igualmente abstrato, representante dos ‘particulares’ – as unidades produtivas autogeridas – de regulação e controle social, que no caso específico eram os sindicatos. Não eram os operários quem controlavam diretamente a produção, circulação e consumo, pois continuavam realizando-as sob a forma-mercadoria, ainda que ela fosse sindicalmente "controlada". Em seu papel regulador e controlador, a federação sindical (CNT), se responsabilizava pela repartição do "fruto integral do trabalho" de cada proletári@. Continuava-se assalariado, então, e vítima da passividade que injeta vitaminas nos valores e métodos da política, do Estado.
Evidentemente, o papel desempenhado pela perspectiva anarco-sindicalista não ofusca a coerência evidenciada nas ações dos Conselhos da Catalunha e das milícias revolucionárias, num certo momento militarizadas pela própria CNT em "aliança tática" com a Frente Popular.

Se durante a Revolução Russa, e revoluções co-irmãs, a tentativa de "superar" o mercado através do reforço do Estado (a expropriação do poder dos soviets pelo partido bolchevique) manteve ambos cada vez mais cruentos, na Revolução Espanhola, a ideologia anti-estatista de controlar e limitar a níveis aceitáveis o mercado acabou reproduzindo-o – ao mercado - ainda mais e assim semeando um novo poder de Estado. Partidos e sindicatos, por vias políticas bem distintas, acabaram mantendo e desenvolvendo de modos peculiares tanto o mercado quanto o Estado. Qualquer instrumento organizativo, por mais libertário que seja ou por mais proletários, pobres e explorados que existam em seu meio, que faça germinar e reproduza sua sociabilidade a partir da política e da economia fracassará em seu intento revolucionário. Por isso, também tecemos a crítica dos sindicatos. Em nossa opinião, não se trata de fazer a crítica das políticas econômicas e nem basta, sob hipótese alguma, desenvolver a crítica da política (o politicismo) ou da economia (o economicismo), antes, trata-se de realizar a crítica prática unitária da economia política (o sistema único do mercado e do Estado).

As atuais condições de luta e o esforço pela auto-organização da classe

É possível e radicalmente necessário que experimentemos hoje a realização de esforços dentro e fora dos locais de trabalho que superem a política e especificamente superem as tradições sindicais, as quais possuem limitações estruturais que impedem a realização de uma crítica prática de totalidade que ponha em xeque o sistema universal de produção de mercadorias e toda a sociabilidade que lhe é correspondente. Pensamos que não se trata fundamentalmente de rever a concepção e prática sindical ou mesmo o conteúdo radical do sindicalismo revolucionário, mas antes, trata-se de construirmos uma prática organizativa capaz de potencializar aquela crítica e assim contribuir para que @s própri@s proletarizad@s ergam, sem a intermediação de terceiros os seus organismos diretos, autônomos, de contra-poder, necessariamente sem representantes, sejam sindicalistas ou parlamentares (pois tanto faz, no final, de que separação particular da política se trata. Aqui novamente chamamos a atenção para a necessidade de compreender a esfera política como aquela que realiza em vários níveis de institucionalização, o poder separado da mercadoria e do Estado). Trata-se de descobrir os meios próprios, gestados na e pela experiência concreta, pois quando levamos um sindicalismo revolucionário ou qualquer outra proposta de antemão como se fossem as respostas prontas para a classe, acabamos por impor alguma forma ideal de organização, nos comportando assim como políticos, especialistas, que tão bem servem ao mundo reificado da mercadoria universalizada. Isso é, pensamos, o exato oposto do esforço de junt@s forjarmos na experiência cotidiana comum a nossa auto-organização de proletarizad@s.

Muitas vezes ouvimos o argumento de que a única forma de desenvolver a luta imediata d@s proletarizad@s seria insistir na organização sindical, embora renovada pela modernização da concepção e prática sindicalista revolucionária. Segundo esse ponto de vista, não seria justo deixar de lado esse espaço para que seja ocupado pelos reformistas de direita, esquerda e companhia... Nos parece que essa perspectiva se baseia numa separação própria do mundo reificado da mercadoria: a separação entre luta imediata e luta histórica, entre luta econômica e luta política. Isso está longe de significar uma crítica capaz de contribuir para a constituição de uma experiência radicalmente autogestionária, pois mantém o nosso cotidiano na base do suprimento das necessidades imediatas sempre integradas ao sistema (a manutenção de nossa condição de proletarizad@s), ao mesmo tempo em que afirma nas entrelinhas que a mudança só pode se operar na esfera de uma luta e um espaço distintos daqueles do nosso cotidiano. Assim se basearam, por exemplo, os marxistas ortodoxos para identificar o cotidiano "da classe" com um tal de espontaneísmo ou "consciência pré-socialista" sempre refém dos terceiro das categorias da política, como os partidos ou até mesmo as vanguardas "horizontais". Dessa perspectiva, será sempre improvável a revolução do cotidiano. Quanto ao fato de ocupar espaços, falaremos sobre isso adiante quando abordarmos a questão do reacionarismo sindical...

Mas o que nos leva a afirmar que existem as condições para que a crítica de totalidade ao trabalho assalariado, ao mercado e ao Estado se afirme? E que possíveis experiências sócio-organizativas não sindicais essa crítica deveria e poderia materializar?

O espaço da fábrica hoje é fluido. A produção mestra não se concentra propriamente em uma unidade central, pois se encontra vinculada a outros sub-setores terceirizados de produção e serviços que lhe abastecem continuamente a partir de todo o espaço urbano (até mesmo o campo hoje é "urbano", pois as relações sociais aí existentes subordinam-se por completo à industrialização fluida capitalista e sua sociabilidade, desde que ocorreu a mecanização, quimificação e transgenização da agricultura). Some-se a isto as unidades da máquina econômica voltadas para a circulação e comercialização das mercadorias, que se multiplicaram e especializaram com a imensa diversificação das mercadorias produzidas. Toda esta teia industrial descentralizada e fluída submete-se completamente à centralização do capital (concretamente, ao poder absoluto das corporações transnacionais). É fato que a máquina de concepção, planejamento, criação e reprodução de mercadorias conta com múltiplos e diversos pólos de absorção mais ou menos lucrativas da força de trabalho. As unidades industriais fundamentais e centrais da economia agregam em escala hierárquica uma série imensa de outras unidades menores, mas não menos importantes, no processo de produção e reprodução do capital. Essa mudança de forma foi chave para reabsorver a nova mão-de-obra decorrente da adaptação aos novos tempos da divisão social do trabalho assalariado.

A revolução científico-técnica otimizou a produção de mercadorias e garantiu um mecanismo de dominação sem precedentes na história. Já não bastava para a burguesia universalizar a mercadoria, pois era preciso enraizá-la como valor ético fundamental na sociedade e nas individualidades. Era preciso fazer com que a imensa maioria da humanidade não apenas se mantivesse na condição de submissa ao trabalho assalariado, mas que aceitasse passivamente tal submissão e não dependesse mais apenas da oferta direta dos capitalistas, procurando por si mesma "realizar" a forma-mercadoria em sua psique e em seus próprios esforços práticos cotidianos. É a coisificação levada às ultimas conseqüências no sentido de escravizar subjetivamente o ser humano. As corporações transnacionais sabem muito bem que as contradições do sistema engendram crises gerais e que nunca será fácil controlá-las. Os proletarizad@s do mundo precisam então aceitar suas vidas como se fossem destino e convencer-se de que a sociabilidade dada é a única possível, a mais rápida e segura garantia de felicidade (sempre ilusória, espetacular, mas nem sempre – e cada vez menos – sinônimo de "bem-estar social"). Os cientistas da intelectualidade burguesa sabem que é preciso investir enormememente no controle psicológico e social da humanidade. O inimigo sabe que não é mais possível assalariar formalmente em seus postos de emprego disponíveis a maioria da humanidade, mas sabe também que pode convencer no sentido de que as pessoas "assalariem" suas mentes e assalariem-se objetivamente através de formas mais degradantes ou não tradicionais. Não é à toa que as corporações transnacionais buscam impor seus compromissos com a classe proletária pensando sempre nisso e reservam somas vultuosas para esse processo (vide os programas de erradicação da pobreza do Banco Mundial). Mas é preciso ter claro que esse esforço não é apenas superestrutural, resolvido apenas politicamente. Ele se subordina diretamente à economia aos esforços ativos burgueses de resolução positiva do processo de divisão do trabalho assalariado nas crises de reprodução e crescimento do capital.

As mudanças no processo de organização do trabalho assalariado precisam, desde algum tempo, ligar-se intimamente ao reforço cotidiano da sociedade mercantil-monopolista, ao esforço de trazer para todos os espaços de vivência social o objetivo de realizar a forma mercadoria. Pela primeira vez na história, a revolução científicotécnica permitiu isso. A cultura do supérfluo, o incremento e multiplicação fantástica do turismo e do lazer, as ONGs, o investimento em circos tecnológicos para a população degustar foram alguns dos esforços no sentido de seduzir o proletariado. A fluidez da fábrica, ou melhor dizendo, de todo o ciclo da economia mercantil (produção-circulação-consumo de mercadorias), foi um mecanismo não apenas econômico – na medida em que as agora múltiplas e concêntricas empresas de produção, manutenção, serviços, comércio, logística, etc construídas em função da fragmentação social do trabalho assalariado otimizam a realização da mais-valia e diminuem substancialmente custos, mas sobretudo de manutenção da passividade que faz viver o sistema. Ora, essa fluidez da produção impõe a submissão da humanidade ao processo de mercantilização da vida. Até mesmo a parcela proletarizada considerada "descartável" do ponto de vista econômico participa desse processo na medida em que continua lutando pela sua reintegração produtiva e consumindo mercadorias. A fábrica agora está também na subjetividade e em cada milímetro de espaço social.

Mas se a burguesia festeja sua supremacia, ela não pode fugir das contradições que o processo provoca. Tais contradições não gerarão por si mesmas a revolução social, pois esta dependerá da in(ter)venção consciente d@s proletarizad@s do mundo inteiro. O esgotamento dos recursos naturais, o aumento e incremento da violência estrutural, as exigências de consumo incapazes de ser satisfeitas, o desperdício absurdo de bens úteis, o embrutecimento espiritual, dentre tantas outras insanidades do sistema de produção de mercadorias não podem ser impedidas por esta sociedade maligna. E a contradição só se dá porque existe a negação. Se hoje estamos dominados pela mercadoria em todos os aspectos, também é verdade que em todos eles resistimos. A partir de cada interesse vital e espaço social concreto negamos parcialmente a lógica do sistema e podemos fazer a crítica prática que o negará na sua totalidade. O único modo de perpetuação ou reforma do sistema é o aperfeiçoamento da barbárie e a administração do inferno.

Os problemas que @s divers@s proletarizad@s do mundo inteiro enfrentamos possuem um elo estrutural comum que é o fato de serem provocadas pela subordinação de nossas vidas ao dinheiro, ao trabalho assalariado e ao Estado. Passo a passo indivíduos e coletivos começam por suas próprias iniciativas a negar, ainda que parcialmente, os fundamentos da sociabilidade burguesa. A possibilidade de que essas experiências desenvolvam uma crítica de totalidade, ou seja, adquiram cada vez mais autonomia em relação ao Estado e a todas as instituições que comungam com a sociedade burguesa e possam dialogar cada vez mais e melhor entre si indica um caminho viável a seguir no nosso trabalho social cotidiano: se a forma mercadoria e toda a sociabilidade que lhe é correspondente domina a totalidade da vida humana, a nossa resistência deve caminhar para que possamos retomar autônoma e integralmente o controle de nossas vidas reconhecendo que isso só será possível a partir do tecimento cotidiano de uma subversão/sabotagem socialmente organizada, mundializada e revolucionariamente articulada contra a máquina de realização mercantil. E apenas instrumentos sociais voltados para esse objetivo podem realizar essa empreitada, ou seja, eles precisam, desde suas raízes, funcionar com independência e autonomia e se negar a integrar o compromisso entre proletariado e burguesia que garante a manutenção do sistema capitalista. Agora aqui podemos afirmar: também por isso não se trata de reforçar os sindicatos.

O sindicalismo é apenas uma das faces político-ideológicas do especialismo característico da sociedade burguesa. Não é possível superá-lo através da constituição de outros especialismos, "revolucionários" e toda a separação que eles reforçam. A crítica do sindicalismo pressupõe a crítica de todo especialismo e de toda a representação. Assim é que observamos processos degenerativos similares aos dos sindicatos nos chamados movimentos comunitário, estudantil, indígena, negro e demais movimentos que refletem, tradicionalmente, em seu interior a fragmentação da luta e organização d@s proletarizad@s. Antes de tudo, portanto, devemos lutar para romper a cultura de hierarquização e divisão estrutural dos movimentos sociais d@s proletarizad@s. Essa crítica prática é condição básica para que se possa começar a libertar-se cotidianamente dos compromissos (às vezes sutis, às vezes impostos!) entre burgueses e proletários que mantêm e regulam o funcionamento da máquina capitalista. Enquanto os movimentos sociais d@s proletarizad@ reproduzirem em sua experiência cotidiana valores e mecanismos de funcionamento similares aos dos Estados e do mercado, a passividade permanecerá imperando e longe estaremos da negação de totalidade necessária para mudar a vida.

O primeiro passo é reconhecer que, a partir de nossos cotidianos, podemos realizar alternativas aos sindicatos e seus similares, desde que experimentemos processos reais de luta por autoorganização. Esforçando-nos para que nossas experimentações não se atomizem e nem se isolem, teceremos as condições de autogestão e diálogo prático das lutas capaz de torná-las uma crítica prática de totalidade. Isso significa que possamos entender que nossas experimentações, se não desenvolvidas com autonomia, serão sempre objeto da tentativa de domesticação de especialistas, por exemplo, de sindicalistas ou líderes comunitários cuja função é enquadrar os anseios e as lutas autênticas d@s proletarizad@s no compromisso permanente entre capital e trabalho assalariado. A nossa contribuição deve se dar também no sentido de potencializar a comunicação direta e permanente das diversas experimentações cotidianas onde germine a compreensão da necessidade imperativa de uma luta mundializada contra as corporações transnacionais e seus agentes visíveis e invisíveis no cotidiano. E será através desse imprevisível caminho de diálogo prático, que encontraremos por nossas próprias forças os meios adequados de nossa auto-organização.

Evidentemente, é fundamental o diálogo prático revolucionário entre as experimentações realizadas nos locais de trabalho e as que se dão nos demais espaços de vivência social, como os locais de moradia, os guetos contra-culturais, as escolas, etc. Mas para que isso aconteça é fundamental a existência de experiências autônomas nos locais de trabalho. É pertinente essa colocação porque é exatamente no lugar de realização direta do trabalho assalariado – onde, ademais de pôr a nu as contradições mais incontornáveis do capitalismo e por isso mesmo, é exatamente onde a crítica prática têm maiores possibilidades de sabotar diretamente o funcionamento da máquina de reprodução mercantil – onde no presente há poucas e embrionárias experiências de organização autônoma.

É possível uma atuação não especialista nos locais de trabalho. E deve ser completamente não especialista e não apenas não sindical, pois há posições que defendem, por exemplo, um trabalho político contra os sindicatos centrado na construção de grupos de fábrica que possam se constituir como novas representações dos operários. Assim, precisamos defender sempre que a construção tão necessária de grupos autônomos nos locais de trabalho jamais deve buscar se cristalizar como embriões de direção e poder de Estado "revolucionário". A construção de grupos autônomos nas fábricas, por exemplo, deve ser desenvolvida para realizar a crítica prática cotidiana dos fundamentos da mercadoria e da sociabilidade burguesa. Deve tratar de todos os aspectos da vida cotidiana dentro e fora da fábrica, da crítica de todas as hierarquias, do trabalho assalariado ao gênero, à etnia, etc. distante de qualquer possibilidade de controle e regulação da venda da força de trabalho assalariado. Mas é tão rara e incipiente a nossa experimentação disso, que apenas ela própria poderá enriquecê-la teórica e praticamente.

Por fim, gostaríamos de alertar que os grupos autônomos de fábricas, empresas de serviços, etc contarão sempre com o reacionarismo sindical. Os sindicatos em geral se portam como delatores desses grupos, pois terão sempre questionadas as suas representatividades, trazendo-lhes a ameaça de serem deslegitimados e denunciados pelos próprios trabalhadores. A visão de que os grupos autônomos devem intervir de uma ou outra forma nos sindicatos para ocupar espaços só poderá nos levar ao fracasso e ao aborto dos nossos melhores esforços.

Notas

1. Os "esquerdistas" foram uma corrente no interior do chamado movimento comunista, no início dos anos 20, que se propunham, no interior da III Internacional, a manter a mesma postura de "ofensiva" revolucionária do período da Revolução Russa e de sua fundação; entre suas posições estava a recusa a trabalhar nos sindicatos reformistas, a participar da eleições, a aliar-se com os reformistas socialdemocratas etc. Lênin, em O esquerdismo, doença infantil do comunismo (1921), os caracterizou alternadamente de "esquerdistas" e de "comunistas de esquerda".

2. Os conselhistas foram e são uma corrente nascida no interior da "corrente dos comunistas" de esquerda que, a partir das experiências dos Conselhos Operários no primeiro quarto do século 20 (Rússia, Alemanha, Itália, entre outros), defendem que essa é a forma principal de organização autônoma d@s trabalhador@s e não os sindicatos; algumas correntes conselhistas defendem a teoria do "partido revolucionário", outros não.

3. Com esse termo, estamos nos referindo à concepção bolchevique de que a revolução social tem como centro a conquista do poder de Estado, concepção que se expressa nos termos "Estado operário", "Estado socialista", "semi-Estado" etc. Essa é uma concepção presente no conjunto da socialdemocracia européia desde os finais do século 19 e comum a todas as suas correntes do início do século 20, tanto ao setor reformista (socialdemocracia européia), quando revolucionária (bolchevismo e o movimento comunista, sua extensão). Sobre a nossa crítica do estatismo, ver o artigo "A atualidade da crítica do Estado", publicado em nossa revista nΊ 9.

4. Práticas de organização do processo de trabalho em grandes indústrias, baseadas na separação entre as tarefas de concepção e execução e na mecanização que garante a recomposição desse processo de trabalho parcelado ditando a cada operário seus gestos e seu ritmo na cadeia produtiva; seu auge se deu dos anos 20 até fins da década de 60, entrando em crise a partir da necessidade dos capitalistas de opor uma "reestruturação produtiva" à luta d@s trabalhador@s nos anos 70.

5. A esse respeito, ver o artigo dos camaradas da Rete Operaia (Precari Nati) no número anterior de nossa revista.

6. Política que, desde os anos 80, com a crise da indústria automobilística no Estado brasileiro (fortemente abalada pela revolução tecnológica e a elevação das exigências de competição no mercado mundial), a CUT brasileira e os principais sindicatos a elas afiliados (como os sindicatos metalúrgicos do ABC paulista) passaram a defender; tratava-se de uma "câmara" composta entre sindicatos, patrões e governo tendo em vista tomar medidas de defesa da indústria automobilística aqui instalada, tais como a isenção de impostos, subsídios etc.

7. Programa milionário do Estado brasileiro que oficialmente visa requalificar a mão-de-obra, capacitando-a a competir no mercado de trabalho; programa cujas verbas têm enchido os bolsos de sindicalistas, professores universitários, especialistas de toda espécie em projetos dos mais diversos tipos.

8. Falamos "ideologia" aqui no sentido em que temos buscado resgatar, isto é, enquanto "falsa consciência", enquanto conjunto (coerente ou não) de idéias autonomizado diante da vida e, no entanto, não é independente do modo alienado em que a vida está submetida nas atuais relações de produção capitalistas; a ideologia não é apenas a consciência invertida e alienada do mundo, mas a consciência própria (e positivadora) de um mundo alienado e invertido.

 

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