Editorial:

Autonomia ou barbárie: o capital mundializado e a resistência

A crescente resistência internacional à mundialização do capital é, certamente, o fato mais notável dos últimos anos. Impulsionada pelos efeitos da aceleração da internacionalização do capital, a resistência à "globalização", cada vez mais ampla, transfigurou a cara do mundo. Do discurso triunfante do "neoliberalismo" e do "pensamento único" do início da década às contestações cada vez mais amplas ao "projeto neoliberal" e à "globalização desumana" percorremos um caminho considerável. No âmbito desta contestação encontramos, entretanto, expressões as mais variadas, num leque amplíssimo que vai desde o lamento nacionalista que reclama da perda de poder dos Estados nacionais da periferia do desenvolvimento globalizado – os "países pobres" –, passando pelos socialdemocratas saudosos do Welfare State, como a ATTAC, até expressões mais radicalizadas que localizam no domínio das transnacionais a origem das mazelas do desenvolvimento globalizado, como ocorre com a AGP. Falar de "globalização" e anti-"globalização" deixa espaço – e não se trata aqui de "preciosismo" terminológico – para um sem-número de interpretações. É o que de fato vem ocorrendo. Pensar as tarefas dessa resistência internacional à "globalização" à luz de uma compreensão radical da mercadoria e do capitalismo é, a nosso ver, a única maneira de nos impedir de dirigir as nossas energias a objetivos equivocados.

O processo de aceleração da mundialização do mercado, a chamada "globalização" da economia, tem sido marcado, de um lado, pela brutal expansão do capital e pela sua concentração nas mãos de poucos grupos transnacionais e de outro pela brutal exclusão da produção e do consumo de um número cada vez mais absurdo de indivíduos ao redor do planeta. No nível de concentração do capital que caracteriza o mercado mundial hoje, toda a estrutura produtiva – desde pequenas empresas que de modo "terceirizado" produzem parafusos, leite, queijos rocquefort etc. até as que fabricam sofisticados componentes microeletrônicos – se encontra organizada em uma hierarquia econômica que tem no seu topo cerca de 200 megaempresas transnacionais. Estes 200 monopólios capitalistas concentram a quase totalidade do processo produtivo no mundo, ou seja, decidem o que, como e onde vai ser produzido; o que, como e onde vamos comer ou não, vestir ou não, morar ou não, trabalhar ou não. Tal concentração acelera o desemprego estrutural, pois todo o desenvolvimento tecnológico, sob o controle destas 200 empresas, é posto a serviço do aumento da produtividade e da diminuição dos custos, para possibilitar o "livre" fluxo das mercadorias, razão também da eliminação de fronteiras legais para a circulação mercantil, da formação dos blocos, da unificação das moedas etc. Para que possamos melhor nos situar e bem avaliar as alternativas propostas, parece-nos fundamental situar com clareza teórica o que é mesmo isso a que temos chamado de "globalização".

A mundialização da economia como desenvolvimento necessário do mercado

Quando falamos de "globalização" estamos, de fato, falando do desenvolvimento da própria lógica do capital, da produção mercantil e do dinheiro. Do ponto de vista histórico este processo não representa mais que a extensão – determinada pela exigência do movimento de expansão do capital –, em escala cada vez mais mundial, do processo de "autovalorização do valor" (Marx). O que queremos dizer com isso?

A negação da "autonomia" dos Estados nacionais – visível no atual processo de "globalização" – frente ao capital internacional, surge historicamente da expansão do sistema de produção de mercadorias na qual se constituíram estes mesmos Estados. A função histórica dos Estados-nação foi determinada pela criação de moedas nacionais que fossem mais "universais" que as moedas dos feudos (as moedas locais), de uma legislação única (o Direito moderno das constituições nacionais e o Direito internacional), um sistema único de impostos etc., para que possibilitassem o livre desenvolvimento do comércio no âmbito de uma nação e entre diversas nações. Tratava-se, já então, do desenvolvimento de uma lógica na qual os interesses não-econômicos e as formas de relação extra-econômicas eram submetidos ao desenvolvimento próprio do "econômico", concretamente, da produção de mercadorias e do dinheiro. Quando neste final de século experimentamos um processo real de degradação da "autonomia" dos Estados nacionais em nome dos direitos internacionais do capital (através dos acordos bi ou multilaterais e das adequações das várias legislações nacionais aos interesses transnacionais do capital), o que vemos é a reafirmação daquilo mesmo que constituiu tais Estados aparentemente autônomos nos primórdios do capitalismo: permitir a livre circulação das mercadorias, dar vazão ao movimento expansivo do capital. Só que agora o lugar antes ocupado pelas restrições feudais é ocupado pelos Estados-nação; daí que seja preciso agora superar as restrições nacionais, como antes o fora em relação às locais. O que aconteceu com o capital nesse meio tempo?

Dizíamos, no início, que o que mais salta aos olhos no cenário de fim-de-século do nosso mundo "globalizado" é a concentração extremada das riquezas do mundo nas mãos de uns poucos grupos transnacionais. Ao contrário do capitalismo do século passado, onde a livre-concorrência era a marca do cenário econômico, temos no século XX um capital absurdamente concentrado e centralizado nas mãos de uns poucos, o capital monopolista.

A compreensão da desaparição da autonomia dos Estados nacionais – elemento central da "globalização" – depende, a nosso ver, centralmente da compreensão de que o desenvolvimento do capital possui um movimento autônomo, o mesmo movimento autônomo que conduziu, historicamente, à acumulação de capital. Assim, é um só o fundamento que produziu a acumulação de capital (com a conseqüente formação do capital monopolista) e a formação e desaparição da "autonomia" dos Estados-nação.

O processo de desenvolvimento histórico do capitalismo que conduziu à formação do capitalismo contemporâneo, mundializado e monopolizado, foi o processo de desenvolvimento lógico e necessário do automovimento do capital. Isso significa, em simples palavras, que onde quer que tenha existido ou vá existir a produção de mercadorias, ou seja, um mundo regido pelas coisas e não pelos homens – fatalmente ocorrerá a concentração e a centralização do capital nas mãos de uns poucos. A compreensão desse fato crucial torna-se cada vez mais necessária para que não deixemos escorrer por entre os nossos dedos as possibilidades de negação radical do mundo que aí está, justo quando pensamos estar negando-o mais radicalmente. Inúmeros ativistas anti-"globalização" não localizam no mercado mesmo a real fonte de todo o processo de brutal concentração de riquezas que ora experimentamos no mundo. Inclusive, em alguns casos, não localizam sequer o mercado como inimigo e quando assim o localizam, pensam o Estado nacional moderno como o seu oposto, e não como o agente da reprodução do capital que de fato ele é, mesmo quando foi Estado de Bem-Estar Social (aparentemente oposto ao "neoliberalismo" da "globalização") ou Estado "socialista", na experiência do dito "socialismo real". Pensando assim, tais ativistas propõem "mais Estado": mais impostos (taxas contra grandes fortunas, transações comerciais etc..) contra o "neoliberalismo". Na verdade, essa perspectiva de luta anti-"globalização" só reproduz a lógica do capital e assim perpetua a lógica impessoal do dinheiro. Mesmo quando se propõem a criação de "moedas locais", a construção de cooperativas etc. mantêm-se a reprodução de mecanismos mercantis – e, portanto, o capital e sua lógica monopolizadora. É de algo muito concreto que aqui se trata: de quais alternativas são possíveis apresentar ao mundo "globalizado" do capital e qual o conteúdo dessas alternativas. Só na medida em que formos capazes de compreender radicalmente a produção capitalista como produção de mercadorias é que seremos, pensamos, capazes de enfrentar os desafios de construir um mundo dos humanos, não um mundo das coisas.

Dizer que o mundo "globalizado" (o mundo das corporações transnacionais) é conseqüência necessária da produção de mercadorias implica ter a clareza de que, sob o domínio do mercado, é inevitável a submissão cega dos homens à abstração do dinheiro (tenha ele a forma que for) e a ausência de controle real das suas vidas.

Todos nós falamos de anti-"globalização". Outros muitos falamos mais: falamos de anti-capitalismo, tendo claro que na origem da chamada "globalização" se encontram as relações capitalistas e o domínio das empresas transnacionais. Mas o que é o capitalismo senão a produção universal de mercadorias? Isso parece não estar claro para todos os anticapitalistas, ainda quando – como no Manifesto da AGP – localizam pontualmente as conseqüências negativas da mercantilização em diversos aspectos da vida (sistema de gêneros, natureza, cultura...); aí, a mercadoria é recusada parcialmente, mas ainda não negada na radicalidade.

Produção mercantil e socialização

A produção de mercadorias é essencialmente diferente da produção das "coisas" das quais necessitamos. Uma "coisa" é algo que nos serve, que é útil, que satisfaz a um desejo ou necessidade qualquer; é, assim, um "valor de uso", caracterizado pelas suas qualidades, por exemplo, uma roupa que serve para vestirmos. No entanto, a produção de mercadorias é, antes de tudo, a produção de coisas para vender, a produção de valores de troca. Não são as necessidades e os desejos das pessoas que determinam a produção de mercadorias, mas a intenção de vendê-las, de trocá-las por dinheiro. Na simples troca de uma roupa por um par de sapatos (ou por uma quantidade de dinheiro que lhe equivalha) não somos os portadores dessas mercadorias – nós, os humanos – que decidimos, segundo nossas vontades, necessidades e desejos, os critérios da troca, mas sim o valor, os preços, os custos de produção etc. Ou seja, as trocas mercantis possuem autonomia em relação aos próprios homens, submetendo os seus desejos, as suas necessidades e vontades às leis das trocas de coisas.

O capitalismo é a sociedade onde toda a produção de coisas é submetida à produção de mercadorias e, portanto, a sociedade na qual reina a autonomia das leis das trocas. Aqui, onde a produção de mercadorias é a lei, o objetivo central da produção social é o lucro. Assim como na troca da roupa pelo par de sapatos os produtores não têm controle sobre os critérios da troca que vão realizar, no capitalismo o movimento da economia escapa inteiramente ao controle dos homens, sejam eles capitalistas ou proletários.

O capitalismo é o único sistema de produção universal de mercadorias, ou seja, o único no qual só através da compra é possível o acesso àquilo de que se necessita, precisa ou quer. Mas para comprar é preciso ter dinheiro e, para ter dinheiro, somos obrigados a nos incluir no mercado, ou seja, trocar algo. Se não somos proprietários de nenhuma outra mercadoria, temos que trocar (vender) a única que nos resta: a força de trabalho. Como assalariados teremos, então, o dinheiro que nos permitirá comprar aquilo de que necessitamos. É essa mercadoria que vendemos aos capitalistas que, quando usada (posta a produzir mercadorias), produz um valor mercantil superior ao seu próprio, valor que, apropriado pelo capitalista, se transforma em lucro. É esse trabalho assalariado, enquanto fundamento da sociedade moderna, que é não só a fonte do lucro, mas também do fato de que toda a produção social é, no capitalismo, produção de mercadorias.

Ora, sempre que se tratar da existência de relações mercantis estaremos diante de relações sociais que escapam ao nosso controle, seja em situações nas quais o Estado é o proprietário jurídico das condições de produção, como nos regimes pseudocomunistas, seja sob o "neoliberalismo", seja nas experiências social-democratas ocidentais de regulação estatal da economia, ou ainda nas experiências de produção de mercadorias em cooperativas autogeridas. Em todos esses casos, estaremos diante da produção de coisas cujo objetivo primeiro e fundamental é a produção de valores de troca, a aquisição de dinheiro, com o qual e somente com o qual as coisas úteis, os valores de uso serão adquiridos.

Mesmo quando o propósito for viabilizar o consumo de coisas por todos – como podemos imaginar, por exemplo, num mundo gerido por empresas cooperativas – tal consumo, no entanto, estará submetido à lei das trocas mercantis enquanto esse acesso só puder ser feito através do dinheiro. Que esse dinheiro seja adquirido vendendo a força de trabalho ao empresário privado ou ao Estado ou no interior de uma cooperativa que estabeleça internamente e com outras cooperativas relações baseadas nas trocas privadas, nada altera essencialmente: serão sempre trocas mercantis, relações entre coisas e não entre homens. Mesmo na produção cooperativa, se trata da produção de valores de troca, pois as pessoas não terão acesso diretamente às coisas das quais necessitam e sim por meio de trocas privadas. Que estas trocas não se dêem a partir de uma visão que tenha a intenção de lucrar não mudará nada do caráter mercantil pois, por exemplo, cooperativas que forem mais "produtivas" terão mais possibilidades de troca que outras, produzindo lucro e criando uma desigualdade essencial que, sob o domínio das leis da troca, fatalmente se desenvolverá como concentração de riquezas.

Se foi dos processos de trocas privadas – inicialmente trocas entre pequenos produtores – e das leis próprias a estas trocas que resultou a monopolização, será também inevitável que, mesmo sob a gestão cooperativa, a humanidade permaneça sob a armadilha do capital pois se trata, aí como antes, de que as trocas privadas implicam a autonomia da produção das coisas em detrimento das relações entre os homens. Ou seja, ou nos colocamos a tarefa de socializar a riqueza que a humanidade inteira construiu, rompendo o modelo das trocas privadas a partir de organismos de autogoverno, dispensando toda a hierarquia – do dinheiro e do Estado – e exercendo o controle sobre nós mesmos ou estaremos ainda na barbárie na qual se constitui toda civilização fundada no dinheiro. Assim – e só assim – poderemos construir um mundo autogerido, no qual possamos, como produtores livremente associados, matar a fome dos corpos e instituir a autonomia como base das relações livres entre os indivíduos.

 

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