Recomeçar tudo desde o princípio

José Roberto

Desde suas primeiras obras, Marx chamava a atenção para o fato de que os "os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser". Chamava o conjunto dessas falsas representações de ideologia. Ideológica seria, para Marx, a crítica que abandona a discussão acerca da realidade e volta-se contra as idéias que se tem dessa realidade. A condição, portanto, para uma efetiva teoria crítica da realidade social é que se refira a essa mesma realidade e não ao que foi dito ou escrito sobre ela.

Essa lição fundamental parece nunca ter sido levada a sério ou às suas últimas consequências pelas correntes ou movimentos que se reivindicaram do legado teórico de Marx. A experiência do século XX foi a experiência do surgimento das mais diversas ideologias marxistas. Nome por si só escabroso, na medida em que Marx fazia uma precisa distinção entre ideologia e teoria; ideologia é a crítica de idéias, teoria é crítica da realidade.

Essas linhas iniciais poderiam parecer exatamente o contrário do que se pretende criticar. Se as diversas correntes e movimentos que pretendem constituir uma ideologia marxista entendessem por ideologia exatamente o que chamamos – com Marx – de teoria, essas considerações que fazemos seriam extremamente ideológicas.

Mas as palavras são fortes, podem obscurecer os sentidos. Uma ideologia marxista foi, nas mais diversas variantes, um conjunto de idéias que se tinha sobre alguma coisa ou sobre o próprio marxismo. Constituído esse conjunto de idéias, cabia aos seus defensores protegê-lo de qualquer heterodoxia, de qualquer deturpação. A história das correntes trotskistas, por exemplo, tem sido a história dos mais variados rachas, frações e tendências por causa da interpretação de um texto escrito há mais de 60 anos, o Programa de Transição, de Trótsky.

Isso para não falar da absurda cegueira que levou milhares de sinceros comunistas (sem esquecer que junto a estes havia um número ainda maior de oportunistas e carreiristas de todos os tipos) em todo o mundo a aderir, concordar ou justificar todas as atitudes e ações da pátria do socialismo, a União Soviética. Que um monstro assassino como Stálin possa ter sido visto como o "guia genial dos povos", o "pai de toda a Rússia" e outros adjetivos épicos apenas é compreensível a partir de muita análise (a de Freud!). Tais manifestações lembram aquele personagem do livro de Jorge Amado, Os Subterrâneos da Liberdade, que não compreendendo o significado da aliança entre a União Soviética e a Alemanha de Hitler, em 1939, afirmava: "Eu posso não compreender, mas tenho confiança. Absoluta confiança... Se não compreendo, a culpa é minha e não deles [dos dirigentes soviéticos]".

Essa cegueira, infelizmente, não foi privilégio dos stalinistas ou de outras seitas variantes (maoísmo, castrismo, guevarismo ...), mas de todo os setores que se colocavam inclusive à sua esquerda. Dito isso, não queremos nos colocar como um privilegiado Tribunal capaz de julgar o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, do que foi a experiência do marxismo no século XX. Também nós acreditamos que, até depois do seu inglorioso fim, a União Soviética seguia sendo um Estado Operário ainda que degenerado; também nós perseguíamos uma estratégia comunista que consistia, em última instância, na expropriação/estatização de forças produtivas isoladas (isso, é claro, ornamentado com frases sobre a revolução mundial). Extraíamos as nossas convicções e certezas dos textos de Marx, Lênin e Trótsky. Se o lema de Marx consistia em "de tudo duvidar", tal lema caiu esquecido, foi substituído por uma leitura apologética dos clássicos.

Para nós, resgatar a viabilidade do projeto comunista de superação da sociedade capitalista passa por abandonar toda discussão ideológica, todo conteúdo de princípio que não tenha por base o solo da realidade social mesma, com seus movimentos e contradições que estão acima de qualquer modelo teórico pré-concebido.

Nesse sentido, não é mais possível postular a estratégia comunista a partir de qualquer revolução nos marcos de uma nação isolada. Quando em 1917, os trabalhadores russos destruíram o poder de Estado da burguesia, os bolcheviques viram imediatamente na jovem classe operária russa a vanguarda de um processo revolucionário que ocorria em escala mundial. Dizer que apenas na Rússia a revolução proletária foi vitoriosa significa constatar que a revolução mundial tinha sido derrotada. Sustentar o poder dos Soviets na Rússia era sustentar um dos momentos integrantes da revolução mundial, momento integrante que perde toda a sua força efetiva (enquanto momento integrante de um processo internacional) quando a revolução mundial dá o seu último suspiro com a derrota da revolução alemã de 1923. É claro que não se pode conceber o desenvolvimento da revolução russa como o desenvolvimento linear da revolução internacional (porém, nos limites dessas linhas temos de nos contentar com afirmações generalizadoras), mas é indiscutível que o esvaziamento do poder dos Soviets russos ocorreu como consequência das dificuldades enfrentadas pelo proletariado europeu em criar o seu próprio poder.

Esvaziando-se o poder dos Soviets, o partido bolchevique foi se convertendo, pela e na própria dinâmica daquele processo, no núcleo de uma organização estatal e, como todo Estado, "em um poder acima, à parte da sociedade" (Engels). A revolta de Kronstadt (1921) é a prova cabal de que na Rússia dita Soviética, o Estado que se pretendia Operário possuía interesses contraditórios com o da sociedade.

O maior ensinamento que podemos tirar das convulsões sociais das primeiras décadas do século é que ou a revolução socialista é construída a partir de um processo internacional ou ela não será socialista. O comunismo não pode existir enquanto fenômeno local, nos dizia Marx em A Ideologia Alemã. A tarefa da classe operária segue sendo a de expropriar as forças produtivas fundamentais da humanidade. Se estas forças produtivas fundamentais não se encontravam na Rússia do início do século, muito menos se encontrariam em Cuba, no Vietnã ou na China (países dos quais não se pode dizer, inclusive, que tenham realizado uma revolução socialista na medida em que o sujeito social daqueles processos não foi o proletariado). O que as chamadas experiências "socialistas" do segundo pós-guerra realizaram foi a estatização das forças produtivas como forma de queimar etapas de seu desenvolvimento capitalista retardatário. Aqui, não se pode dizer que a estatização das forças produtivas seja uma forma inferior de socialização da produção (Trótsky/Mandel); antes, a estatização é o reconhecimento da incapacidade de socializar a apropriação da produção e mantém, portanto, a continuidade do processo de reprodução do capital.

A enorme mundialização que o capitalismo experimenta desde o início do imperialismo (entendido como uma fase do capitalismo), porém agudizada especialmente nos últimos vinte anos (com a recessão de 73 e o extraordinário desenvolvimento científico-tecnológico), obriga o movimento operário a realizar novas formas de contestação do sistema. Formas que não se limitem aos marcos nacionais e que não enquadrem permanentemente a revolução socialista no leito de Procusto da teoria da revolução permanente de Trotsky. Ao bem da verdade, a teoria da revolução permanente foi uma tática, tática correta para o período da onda revolucionária aberta com o início da Primeira Guerra Mundial, mas que perdeu sua razão de ser com o avanço do processo de mundialização do capital.

Nenhum processo revolucionário que venha a ser desencadeado a partir dos esforços de um país de desenvolvimento capitalista retardatário poderia, nas condições contemporâneas, transformar-se em prólogo da revolução mundial. Essas economias, em virtude do processo de desconexão forçada, que concentra e centraliza as forças produtivas fundamentais da humanidade nos países capitalistas centrais, não sustentariam condições econômicas de provocar qualquer estrago na cadeia das contradições do imperialismo. Hoje, os elos mais frágeis da cadeia imperialista encontram-se nos próprios países capitalistas centrais, são para esses países que se devem deslocar as atenções e os esforços da classe operária.

O internacionalismo proletário não deve ser entendido apenas como um aspecto voluntarista do marxismo, mas é, essencialmente, um aspecto prático, é o resultado das próprias contradições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo. Ao não reconhecer fronteiras, ao desrespeitar todas convenções locais, o modo de produção capitalista ligou o destino de todos os povos do planeta: a superação da barbárie capitalista deverá ser um ato internacional ou será apenas o prosseguimento do vale de lágrimas infernal que a humanidade conhece desde o surgimento da propriedade privada.

A classe operária já toma conhecimento dessas transformações e com inventividade vem realizando ações que superam a lógica das lutas nacionais. As greve dos operários da Renault, dos caminhoneiros e a marcha européia dos desempregados e sem-teto, realizadas na Europa entre 97-99, são ações que ultrapassaram o plano das lutas nacionais e desenrolaram-se em escala inter-européia. Se o capital é internacional, ele também apenas poderá ser derrotado internacionalmente. Essa, por exemplo, é a conclusão a que chega o Manifesto da Ação Global dos Povos (movimento de massas que organizou a manifestação contra a OMC realizada em Seattle, em novembro de 99): "Nós não podemos confrontar o capitalismo transnacional com as ferramentas tradicionais usadas no contexto nacional. Neste novo mundo globalizado nós precisamos inventar novas formas de luta e solidariedade, novos objetivos e estratégias em nosso trabalho político".

É necessário sepultar o monolitismo que caracterizou o pensamento marxista desse século. Nenhuma ideologia deve dificultar a necessidade real de repensar o marxismo. Esse movimento de repensar teoricamente o marxismo é parte integrante da luta para superar o capitalismo. O capital não cairá de podre; ao contrário, somente a auto-organização dos trabalhadores e explorados, somente a ação consciente de mulheres e homens poderá derrotá-lo.

Se a história dos partidos revolucionários do século XX foi a história dos rachas e das cisões, foi a história das expulsões e dos expurgos, a história das organizações revolucionárias do século XXI deve ser a história dos debates, dos confrontos teóricos e das ações práticas comuns. Isso não deve significar substituir a esterilidade das discussões ideológicas pelo ecletismo teórico. Mas significa que, depois de décadas de monolitismo e dogmatismo, é necessário reconhecer que nenhuma organização revolucionária pode reivindicar a priori a posse de uma pretensa verdade revolucionária. O critério de verdade para os comunistas deve seguir sendo a realidade. E o que a realidade nos coloca hoje é a necessidade de superar o mercado, de superar o Estado, para alcançar a emancipação humana. Os grupos, as organizações, os movimentos que tenham em comum essa preocupação têm também o dever de se reunirem, de debaterem e de empreenderem ações comuns que contribuam para a criação de uma consciência anticapitalista que ponha abaixo a ordem atual.

Conta-se que o velho filósofo húngaro Georg Lukács, depois que as tropas do exército russo invadiram Praga em 1968, disse que todo o experimento social iniciado em 1917 teria falido, que seria necessário recomeçar tudo desde o princípio. Essa também é tarefa nossa, recomeçar tudo desde o princípio.

 

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