A luta pela memória

João Emiliano

A campanha que a burguesia tem movido em torno dos supostos "500 anos de Brasil" tem um significado fundamental. Não se trata simplesmente de criar – como nas copas do mundo – uma fuga para os problemas sociais ou econômicos ou ainda de uma tentativa, em ano eleitoral, de identificar o governo com a "brasilidade" pentacentenária. Muito menos ainda de a Globo buscar aumentar a audiência de seus programas de época.

Na verdade, algo mais sério e perigoso está se dando: a tentativa da burguesia de expropriar os oprimidos de sua memória histórica.

É claro que é próprio à sociedade de mercado a resistência à história, a ilusão de que a propriedade privada, o assalariamento, a exploração e a miséria sejam "naturais". Como admite-se que os homens são individualmente diferentes, disso deduz-se que é "natural" que também o sejam socialmente... ainda que nada seja mais rejeitado na sociedade de mercado do que a diferença entre os indivíduos, a dissensão das vontades e dos comportamentos. Particularmente no capitalismo contemporâneo, quando a mercadoria impôs sua lógica a tudo no mundo e renova a sua presença em nossa vida cotidiana anunciando ser sempre uma "novidade", a consciência histórica praticamente desapareceu de nossa experiência vivida. Vive-se assim num "eterno agora", no qual o "futuro" – através da presença da tecnologia de ponta em todos os aspectos de nosso cotidano – já está "presente". Na verdade, no entanto, não temos qualquer experiência com o presente, mas com a imagem mistificada dele.

Neste despotismo do mercado, não apenas o diferente é rejeitado (num mundo onde tudo o que se produz e consome é igual), mas também o passado – porque é diferente – é ignorado. Se todo o esforço da produção mercantil é trazer ao mundo o novo que sempre teria sido "desejado" e que por meio da mercadoria se torna agora presente, as pessoas terminam aprendendo a reconhecer o "seu" desejo pela novidade que a mercadoria lhe traz aparentemente de encomenda. Tudo o que não se quer é o velho, é o antigo, é o passado. Para as pessoas, ele porta o desagradável que é estar fora do mundo. Para o mundo, nele está algo perigoso: a denúncia de que a sociedade de mercado, aparentemente tão eterna, natural e a-histórica, possui apesar disso uma história.

A campanha dos "500 anos de Brasil" possui uma intenção clara: admitir a história para reescrevê-la; o que, por fim, significa: negá-la radicalmente. Trata-se de um procedimento essencialmente fascista: a expropriação – repito – da memória e a imposição de uma outra história. Não a outra história efetivamente realizada – e ainda não concluída – pelos oprimidos nos últimos cinco séculos, dos índios e negros ao proletariado e os atuais despossuídos. Mas uma outra história que não apenas não foi a verdadeira história deles (e, portanto, parte também nossa), mas uma história escrita a partir do presente, isto é, a partir de quem, tendo sido até hoje vitorioso, pretende que as batalhas das quais saiu vitorioso tenham sido batalhas feitas para que o tornasse vitorioso. Não haveria outro resultado, e para o resultado que houve foi necessário o processo do qual resultou. Com isso, o passado é encerrado – e a história concluída. É essa conclusão do passado, a intenção de que ele "era uma vez..." o que, na verdade, move a sua "reescrita". Reescrita falsa, pois mantém dela, essencialmentee, o que ela até hoje foi. Apenas, na verdade, acrescenta-lhe uma "moral da estória": "a história atropela indiferente todo aquele que a negue". Esta apropriação do passado tem, enfim, uma intenção fundamental: negar a possibilidade de um futuro diferente.

O revolucionário alemão Walter Benjamin já nos alertava para que abríssemos o passado, abrindo o presente para o passado. Com isto queria dizer: que não tomemos o passado como concluído, mas ainda aberto nas lutas que travamos no presente. Falava assim que era necessário estabelecer uma tradição entre os vencidos no passado e as gerações presentes dos oprimidos: o lugar dessa tradição seria a memória, forma essencial da consciência histórica, que nos alimentaria na luta presente. Somente assim é que o próprio presente poderia ser aberto – e a história reencontrada.

Neste momento em que precisamos urgentemente descongelar a história, restabelecendo teoricamente e praticamente a possibilidade de uma alternativa revolucionária à sociedade que aí está, essas reflexões de Benjamin são muito atuais. O que as lutas de negros, índios e de outras dezenas de movimentos contra as comemorações oficiais dos "500 anos" estão indicando é precisamente o surgimento de uma nova consciência histórica, que não poderia se dar senão contra a sociedade que a nega. Por isso mesmo, essa nova consciência histórica se dá, fundamentalmente, no interior de um novo movimento de luta dos oprimidos, por fora do velho movimento operário, amarrado pelos aparatos burocráticos e suas preocupações eleitorais e sindicais. É como se, intuitivamente, estivéssemos descobrindo na prática o que as reflexões críticas de Benjamin já haviam apontado. Com uma diferença: a crítica da consciência alienada da história não é mais simplesmente uma crítica teórica. É como se, na prática, estivesse reposta a promessa de reescrever verdadeiramente a história. Ou, como dizia ainda Benjamin, de escrevê-la "a contrapelo".

 

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