Editorial

 

Os maus dias passarão?

"...todas essas formas de luta apontam uma tendência da luta de classes, tendência que, se desenvolvida, pode fazê-las aportar num novo e radical movimento de massas. As demandas que lhes impulsionam não são "integráveis": são, ao contrário, expressões das atuais estrutura e dinâmica do capitalismo contemporâneo. Mais ainda: a resolução dessas demandas ultrapassa as possibilidades do atual capitalismo e, portanto, de todos os projetos alternativos de "política econômica" da velha esquerda. Essas formas de luta representam uma crítica prática das formas que assumiram, atualmente, as relações sociais capitalistas. São uma crítica prática, em atos, da economia política." (Os sinais do novo ‘assalto aos céus’, contraacorrente nº 9, Editorial).

Poucas semanas depois do lançamento do último número de nossa revista, cujo editorial analisava as novas tendências das lutas de classes, nós, como o resto do mundo, recebemos as notícias da manifestação de dezenas de milhares de pessoas, em 30 de novembro do ano passado, em Seattle, EUA, durante e contra a reunião da OMC. Naquela manifestação demonstrou-se claramente a amplitude das possibilidades de luta contra o mercado mundial e as corporações monopolistas que o controlam: de amplos aspectos da vida cotidiana, manifestou-se a oposição à "economização" da vida, isto é, a submissão da vida à lógica da economia autonomizada de mercado. Pelas variadas reivindicações dos movimentos de base ali presentes, bem como pelas declarações à imprensa de indivíduos isolados que dali participavam, parece possível dizer que crescentemente – mesmo que em proporções ainda insuficientes – torna-se visível que a economia autonomizada ganha sua expressão mais acabada no domínio atual das corporações sobre amplos setores da vida e que, portanto, é contra este domínio que, sempre que toma consciência de si mesma, a vida levanta-se.

Após a insurreição multi-étnica de 92, em Chicago, e a greve de dezembro de 95, na França, um ciclo se completou com a manifestação em Seattle: os indícios espontâneos de resistência e retomada do movimento proletário aparecem agora, depois de décadas, articulados em nível internacional, expressando claramente objetivos anticapitalistas, na forma da luta contra a mercantilização dos homens, da cultura e da natureza, contra o sistema de gêneros e o domínio mundial dos monopólios que materializa tudo isso. Essa articulação internacional dá-se no interior das iniciativas da Ação Global dos Povos (veja, neste número, publicação em português do Manifesto da AGP).

Após Seattle, duas novas ações globais contra o capitalismo: a manifestação em 16 de abril, em Washington DC, e no 1º de Maio, quando em 73 cidades, de 21 países, manifestações foram organizadas contra o capitalismo, sob a consigna da solidariedade e da resistência internacional dos trabalhadores, conforme o chamado da AGP.

Elemento sem dúvida fundamental dessas experiências é – além do seu já acentuado caráter anticapitalista e internacionalista – a diversidade de reivindicações que lhe servem de base, bem como a diversidade de formas de organização autônomas que lhe dão corpo. Queremos não apenas chamar a atenção para o fato, sem dúvida real, de que começa – e apenas começa – a se configurar uma crítica de totalidade da atual vida cotidiana centrada no combate ao mercado e às corporações monopolistas, mas também, e do mesmo modo fundamental, o fato de que tal crítica se dá a partir de experiências iniciais – e apenas iniciais – de auto-organização. Parte importante dos movimentos que compõem as iniciativas da AGP não apenas reivindicam independência frente aos Estados e aos poderes econômicos, mas também defendem, como forma de organização, a democracia direta, e, como forma de atuação, a ação direta. Uma cultura de crítica à representação é também bastante forte no interior dessas iniciativas. Em suma, gesta-se, no interior dessas experiências e iniciativas, a construção de um projeto de autonomia, entendido corretamente como forma que, desde agora, deve desenhar e fundamentar o projeto de uma nova sociedade, na qual os homens conquistem seu direito a gerir as própria vidas, libertando-se tanto do domínio da economia alienada, quanto das instituições alienadas do Estado representativo moderno, presentes antes, como agora, no movimento operário tradicional.

Nas manifestações do 1º de Maio, realizadas sob a bandeira da AGP, o "carnaval contra o capitalismo" realizado em Londres chamou a atenção pela demonstração de seu programa. Ocupando uma das filiais da McDonald’s, os manifestantes tomaram a produção de sanduíches e os distribuíram gratuitamente entre si. A McDonald’s tem sido um dos alvos prediletos das manifestações radicais na Europa e nos EUA, como símbolo que é da mundialização capitalista, mas também porque os seus métodos de produção extremamente anti-ecológicos demonstram as conseqüências – sobre a natureza – da atual configuração do capitalismo. Os manifestantes, ao distribuírem gratuitamente os sanduíches, isto é, ao se apropriarem do seu valor de uso desprezando e negando o seu valor de troca, demonstraram simbolicamente que a crítica ecológica e contra o domínio das corporações é, em essência, uma luta contra o mercado.

Nos EUA, nas manifestações de Nova Iorque e Chicago, a principal palavra de ordem era, ao lado da denúncia contra o capitalismo, a exigência de "anistia ao imigrantes". Sabemos da centralidade dessa questão nos países capitalistas centrais, onde medidas "protecionistas" do mercado de trabalho unificam normalmente a direita fascista e as organizações sindicais tradicionais. Nesta exigência, os camaradas norte-americanos batiam-se contra uma das questões fundamentais nesta conjuntura de desemprego, afirmando que, por cima das fronteiras e das necessidades do mercado, está – ou deve estar – a solidariedade entre os oprimidos; que, enfim, a causa da exclusão de milhões de pessoas do mercado de trabalho não são os imigrantes, mas o mercado mesmo.

Como esses, outros muitos exemplos seriam possíveis das atuais e generosas possibilidades dessas ações mundiais contra o capitalismo. Possibilidades que a imprensa burguesa já começa a identificar, reconhecendo, como o fez amplamente a imprensa inglesa, a existência de um "movimento anticapitalista" internacional que, desde Seattle, tem promovido manifestações "radicais" e "violentas".

O perigo da autocontemplação

Essas ações mundiais tornam parceiros movimentos de base de níveis bastante diferenciados de organização, de experiência e de organicidade com os trabalhadores. Nelas participam desde importantes experiências de auto-organização, como as comunidades indígenas de Chiapas, de movimentos de imigrantes na Europa ou camponeses na Índia, até pequenos e jovens grupos das mais variadas naturezas.

Numa situação assim, em que pequenos grupos fazem parte de movimentos de vulto internacional, ocorre sempre o perigo – por parte desses pequenos e jovens grupos – de transferência ilusória para si da força social que outros movimentos possuem; ocorre sempre a possibilidade, portanto, de um contentamento contemplativo com a força demonstrada por outros movimentos que também façam parte dessas ações mundiais. Do mesmo modo, pode ocorrer um contentamento com a imagem, veiculada pelos mass media, de suas próprias "ações radicais", levando a um "fetiche das ações".

Em todos esses casos, o perigo de uma contemplação de si mesmo ou de outros, de um contentamento ilusório de sua força e, portanto, ao superestimar suas próprias ações fetichizadas, de uma subestimação da necessidade de contribuir para a auto-organização do conjunto dos trabalhadores. O fetiche das ações radicais – na medida em que configura um contentamento psicológico com a sua própria disposição de enfrentamento com a ordem, identificando ilusoriamente essa disposição pessoal com a força dos movimentos sociais – é, essencialmente, contemplativo. As conseqüências desse contentamento contemplativo, e que o tornam contemplativo, é o substitucionismo na ação pessoal ou de grupo da necessária ação das outras milhares e milhões de pessoas e, portanto, a não-compreensão de que o elemento fundamental do projeto de autonomia é a auto-organização dos trabalhadores e demais oprimidos.

Ocorre aqui o perigo de surgimento – bastante propício neste momento de renascimento de um novo movimento contestatório – de uma cultura de especialistas da revolução. Ocorre que, pelo conteúdo que começa a se desenhar para este movimento contestatório, a saber, o da crítica de totalidade da vida cotidiana como combate ao conjunto do sistema capitalista, essa é uma luta que só pode ser levada adiante por milhares e milhões de pessoas, articulando uma espontânea e individual recusa do sistema de mercado a uma diversa e unificada luta coletiva contra o mercado e os monopólios mundiais. Para esse conteúdo, a cultura especializada da luta dos pequenos grupos é completamente inapropriada. O companheiro Andrew X, do movimento Reclaim the Streets, de Londres, analisa assim a necessidade de superarmos essa cultura dos pequenos grupos neste momento de luta aberta e mundial contra o capitalismo: "O progresso político que tem ocorrido a partir dos últimos anos tem implicado na saída de muitas pessoas de campanhas sobre temas singulares contra companhias ou desenvolvimentos específicos para uma melhor e promissora perspectiva anticapitalista, mesmo que ainda imperfeitamente definida. Ainda que o conteúdo da atividade de campanha tenha alterado, a forma de ativismo não mudou. (...) A forma de ativismo tem se preservado apesar do conteúdo desta atividade ter ido além da forma que a contém. Nós ainda pensamos nos termos de sermos ‘ativistas’ fazendo uma ‘campanha’ sobre um ‘assunto’, e porque somos ativistas de ‘ação direta’ iremos e ‘faremos uma ação’ contra um alvo. O método de campanha contra processos específicos ou companhias específicas tem sido mantido sobre esta nova perspectiva de atingir o capitalismo. Estamos tentando atingir o capitalismo e concebendo o que estamos fazendo em termos completamente inapropriados, utilizando um método de operação apropriado ao reformismo liberal. Temos então o bizarro espetáculo de ‘fazer uma ação’ contra o capitalismo – uma prática absolutamente inadequada".

Não estamos, naturalmente, afirmando que tenha se fixado essa cultura. Mas, por isso mesmo, é preciso evitá-la. As enormes possibilidades que se abrem agora para a reconstrução de um projeto revolucionário centrado na autonomia e na luta mundial contra o mercado estão ainda longe de se realizarem. Para que isso ocorra é preciso compreender a necessidade de contribuir para a auto-organização de milhares e milhões de oprimidos, consolidando a atual rede mundial de movimentos autônomos – materializada já agora na AGP – a partir da ação autônoma, não dos grupos, mas do próprios trabalhadores.

 

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