Nossa resposta

 Tyrone Cândido

 

Ao camarada Euler Conrado,

Saudamos com satisfação o seu esforço de submeter nossas Teses sobre a estratégia revolucionária a uma crítica séria e fraterna. Isso muito nos faz contentes, pois valoriza um esforço que, em nosso coletivo, encaramos com a maior dedicação. Precisamos, porém, observar cada ponto de sua reflexão com a mais acurada atenção que nossos limites teóricos são capazes de empreender. É por isso que exporemos abaixo alguns contrapontos necessários de uma polêmica.

As considerações que o camarada nos expõe sobre nosso documento demonstram, em nossa opinião, alguns equívocos de compreensão. O mais central deles, é o que vê em nosso documento um hiato entre a estratégia da expropriação do capital monopolista e a superação do mercado e do Estado (as formas do domínio capitalista sobre as relações sociais contemporâneas). Na compreensão que o camarada nos apresenta, a expropriação do capital monopolista apareceria - em nossas Teses - como uma fase "prisioneira ainda da produção de valores", o qual não serviria, no interior de uma estratégia revolucionária, à superação da forma-valor. Essa consideração norteia a maior parte dos argumentos levantados no texto. É sobre ela, portanto, que despenderemos o principal de nossa reflexão.

Discordamos desse modo que se nos apontou o referido "hiato". Na atual estrutura da economia capitalista, a expropriação do capital monopolista é a forma histórico-concreta sob a qual se dá a superação do mercado e do Estado. Razão pela qual consideramos, na estratégia revolucionária, tal medida antimonopolista não um "alvo privilegiado", como definiu o camarada, mas sim o único alvo objetivo de libertação das relações mercantis. Considerar isso não significa isolar um ou outro aspecto da realidade, é antes compreender a forma concreta sob a qual as relações sociais capitalistas sustentam-se.

A estrutura e dinâmica do capitalismo contemporâneo determinam que as relações sociais capitalistas encontram-se concentradas, cada dia mais, no domínio da produção monopolista. O fato de o capitalismo hoje estar submetido ao controle de um punhado de grandes grupos monopolistas expressa não um aspecto isolado da realidade, mas a forma histórica real com a qual o capital exerce seu domínio no mundo.

Isso significa que, ao considerarmos a necessidade de a humanidade, como bem entendia Marx, superar a esfera do mercado de capitais e mercadorias como a relação social que rege todos os demais aspectos da vida, faz-se necessária - à estruturação da estratégia revolucionária - a identificação, não apenas da lógica geral e abstrata do sistema capitalista, mas também da forma concreta pela qual tal lógica se expressa historicamente.

No texto a nós enviado, não percebemos tal preocupação. Pelo contrário, a forma pela qual é rejeitada a estratégia de expropriação do capital monopolista demonstra uma imprecisão demasiado ampla do significado do ataque que deve disferir a revolução socialista contra o domínio capitalista. É o que mostra a passagem que afirma que: "a própria produção mercantil capitalista - e não propriamente o monopólio no estágio atual - teve sempre, como característica essencial, a socialização da produção em contraste com a apropriação privada das riquezas. A monopolização, como conseqüência deste processo, não me parece ser o alvo privilegiado a ser atacado, mas sim o capital, enquanto relação social". Sobre o fato de que a socialização da produção em contradição com a apropriação privada ser uma característica essencial do capitalismo em todas as suas fases de desenvolvimento não temos nada a discordar. No entanto, se queremos pensar de modo concreto a realidade, não podemos abstrair essa contradição essencial das fases históricas nas quais ela se deu - na livre-concorrência, no imperialismo do início do século, hoje... - e nem dos problemas que essas formas históricas impõem à luta revolucionária. Em nossa opinião, contrapor a "produção mercantil capitalista" ao "monopólio na sua fase atual" é incorrer exatamente nisso que não pode fazer o esforço de entendimento da atual dinâmica do capitalismo. É, fundamentalmente, substituir a crítica da economia política (como realidade do capital) pela crítica do capitalismo feita a partir de uma idéia de superação do capital. Nesse sentido, a proposta de reflexão do companheiro parece-nos presa a uma crítica ideológica das relações sociais.

Sobre esse primeiro aspecto polêmico, temos a afirmar sinteticamente apenas que não há possibilidade, no atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, de se acabar com o domínio do valor sem se expropriar o capital monopolista. Os níveis de concentração monopolista nos principais setores da economia mundial (do mercado mundial) expressam bem a importância decisiva que a expropriação dos monopólios cumpriria para a socialização, a superação do domínio do mercado sobre a produção social. O que é o mercado de automóveis? 12 empresas. O de processamento de dados, 10; de telefonia pública, 11; de material médico, 7... e assim por diante. Não há dúvida: mercado concretamente existente é sinônimo de monopólios.

Parece-nos, no entanto, que as objeções do camarada às nossas Teses se completam com o argumento de que a expropriação do capital monopolista representa uma fase de transição ainda presa à produção de valores; portanto, o eixo central de nossas reflexões estaria comprometido pelo espaço que supostamente daríamos, num processo revolucionário de superação do capitalismo, à permanência da relação mercantil como forma social de distribuição das riquezas. Consistiria, nesse sentido, em um "hiato" comprometedor de uma estratégia revolucionária a separação entre a expropriação e a socialização do capital, que é o que justificaria, segundo a leitura que o camarada faz de nossas Teses, um período de transição à sociedade socialista (ou comunista, tanto faz).

Apresentam-se confusos, neste ponto, os argumentos do camarada quando analisa as considerações expostas nas Teses. O adendo ao ponto 5 ("A expropriação do capital monopolista só terá um significado efetivamente anticapitalista se avançar para a socialização de suas forças produtivas, isto é, se superar sua forma capital, como forma que se realiza na produção de mercadorias e na troca privada") - no qual o companheiro encontra um "hiato" entre expropriação e socialização - argumenta exatamente sobre a inadequação de se estruturar qualquer perspectiva de destruição do capitalismo (na tese 5 apontado na forma de "crise atual") sem que se instaure "relações diretas" entre os homens, não mercantis, portanto. 

Num sentido preciso, a expropriação do capital monopolista é, em nosso documento, a forma histórico-concreta da socialização da riqueza. É esse o argumento que desenvolvemos, inclusive diante da rejeição que fazemos à perspectiva estatizante que a esquerda tradicional, em nosso século, desenvolveu e para a qual não se colocava a tarefa nem de superar a propriedade privada capitalista (através da expropriação das forças produtivas fundamentais), nem de transformar as formas das relações sociais de produção (por meio da socialização das riquezas na relação direta dos produtores).

Tais confusões, pensamos, deriva da não observância do camarada àquelas especificidades, que apontamos em nossas teses,  dos elementos históricos concretos de socialização da produção que a própria estrutura produtiva da economia monopolizada atual possui. O capitalismo contemporâneo já "aboliu" o mercado em amplas esferas da vida humana - aboliu materialmente, isto é,  como mediação da produção da maior parte da riqueza social - na medida em que concentrou diversos e extensos setores econômicos nas mãos de poucos capitais (§ 2 das Teses). A isso, Lênin, em O Imperialismo, fase superior do capitalismo, já atentava enquanto a forma particular (não exclusiva, mas particular) da nova fase pós-livrecambista do capitalismo mundial. Podemos falar que, sob o domínio monopolista da economia, a socialização da produção dá um salto qualitativo e determina novos elementos para a produção de riquezas.

Estamos absolutamente de acordo com a frase do camarada que diz: "A conclusão a que chegamos é a de que esta possibilidade [de 'caminhar para além do capital'] está dada desde que o capital tornou-se uma relação social hegemônica". Estamos em total acordo com essa conclusão. E não vemos nenhuma contradição entre ela e o que dissemos acima sobre as especificidades particulares dos estágios de desenvolvimento do capitalismo. Sobre isso, rechaçamos totalmente aquela análise desenvolvida por teóricos como Robert Kurz que afirmam que só no estágio atual o capitalismo adquiriu as possibilidades concretas de superação do mercado, devido à completa impossibilidade de expansão econômica significativa, ao "colapso da modernização".

O que consideramos abstrato, na sua análise de nossas Teses, é a desconsideração, repetimos, dos elementos histórico-concretos do capitalismo. Para a estruturação de relações diretas entre produtores, base da sociedade socialista, devemos partir desses elementos concretos, sob o risco de estarmos nos abstraindo (como o fazem os anarquistas) da crítica da economia política, como realidade concreta das relações sociais vigentes. É nesse espírito que Marx, na Crítica ao programa de Gotha, desenvolveu a perspectiva de se encarar como estágio mediador entre o capitalismo e o comunismo um período de transição. Não nos parece, entretanto, ser exatamente o que Marx desenvolve ali o que o camarada considera a "etapa estando submetida ainda às leis da troca mercantil". A sociedade de transição de que fala Marx é a "ditadura revolucionária do proletariado", que se caracterizaria, no processo de socialização da economia da velha sociedade, pela ainda existência de classes sociais antagônicas e em conflito, mas em processo de extinção.  A referência do camarada, no entanto, confunde tal período com aquilo que o próprio Marx chama de "a primeira fase da sociedade comunista" e que Lênin denominou, didaticamente, de socialismo (O Estado e a Revolução). É essa sim, a fase imediatamente anterior àquela do comunismo superior, onde será possível "jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva". De qualquer modo, Marx, na Crítica ao programa de Gotha, de modo algum define a lei do valor como reguladora das relações sociais no comunismo, nem mesmo em sua primeira fase: "No seio de uma sociedade coletivista, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; o trabalho invertido nos produtos não se apresenta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma qualidade material por eles possuída, pois aqui, em oposição ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais já não constituem parte integrante do comum através de um rodeio, mas diretamente".

O fundamental disso tudo parece-nos ser o fato de que a expropriação do capital monopolista define concretamente a superação do mercado como forma fundamental e hegemônica das relações sociais. A ditadura do proletariado, para nós, é o período em que tal socialização deparar-se-á com a infinidade de relações sociais particulares, onde a pequena produção irá gradativamente adequar-se à grande produção e circulação socializadas. O que é preciso se perguntar - e isso é essencial para nossa discussão - é se esses setores da pequena produção seriam capazes de sustentar a lei da produção do valor no centro da economia, a partir da margem da produção. Acreditamos que, pelo que foi exposto até agora, podemos afastar o referido "hiato", supostamente existente em nossas Teses, afirmando que a expropriação é imediatamente socialização na medida que destrói a hegemonia das relações mercantis (mesmo não extinguindo de pronto as trocas marginais).

Dessa forma, a atual evolução histórica parece configurar a crise das relações mercantis também no sentido de - sob o poder do proletariado - fazer recuarem as trocas privadas, num primeiro momento,  para a margem das relações econômicas, como na antigüidade ou no feudalismo. Essa referência é só para termos elementos históricos para demonstrar que nem sempre a existência de trocas privadas marginais significa o domínio da lei do valor sobre a sociedade, e que é possível, portanto, superar em larga escala (talvez para mais de 90% da produção social) as relações mercantis, sem necessidade de equivalência - no processo de expropriação/socialização - entre os setores monopolistas e a pequena produção.

A estrutura monopólica e supranacional do capitalismo determina, na igual medida que faz necessário a socialização das forças produtivas fundamentais de nossa sociedade, uma articulação do movimento revolucionário com bases mundiais. A nova sociedade nascerá, portanto, de formas e relações sociais, por si mesmas, superiores às tradicionais formas políticas materializadas nas relações que os homens, no capitalismo, travam com os Estados nacionais. Quanto a esse aspecto de nossas Teses não podem haver dúvidas.

Portanto, sobre a sua consideração de que "a participação no terreno da política tradicional não apenas não tem 'desvendado a essência' burguesa destas instituições, como, ao contrário, reforçou a crença na democracia burguesa", asseveramos que concordamos integralmente. Mas não derivamos disso, imediatamente, o fato de que - no desenvolvimento prático da luta - qualquer forma política esteja superada. É preciso, sobre isso, voltar a discutir em cima de cada caso concreto, para que se defina, através da crítica prática, a verdadeira natureza (conscientizadora ou embotadora da consciência) que a forma política adquire.

Nossas Teses buscam definir, finalmente, que a forma social pela qual os homens passarão, no processo revolucionário, a se relacionar será a forma direta não coisificada. A forma concreta dessa relação será aquela dos conselhos de trabalhadores, onde o exercício direto do indivíduo não se esbarra com as obrigações ditadas pela produção do valor para o cumprimento das necessidades humanas. É sobre essa base que vemos as possibilidades concretas da luta antimonopolista se expressar na aliança entre o proletariado e os demais setores antimonopolistas, enquanto o sujeito revolucionário constituído. Daí não podermos considerar os interesses imediatos de classes dos pequenos produtores da cidade e do campo como interesses voltados para a defesa do mercado monopolista, apesar de buscarem a sua sustentação econômica através das trocas mercantis. É nesse sentido que falamos, em nossas Teses, que o "fato de que a pequena produção mercantil não pode, por motivos econômicos, ser imediatamente 'abolida' possibilita que, no período transitório de desenvolvimento da produção socialista, os pequenos proprietários sejam convencidos da superioridade da grande produção e circulação socializadas e a nelas ingressarem". Não é, portanto, a aliança com os setores sociais não monopolistas que justificaria a luta antimonopolista. Pelo contrário, é o domínio monopolista que cria as possibilidades e as necessidades dessa aliança.

Nossas Teses falam, portanto, de uma estratégia de luta histórica calcada em bases concretas (a formação social presente) e delas buscam a libertação das relações sociais capitalistas. Estamos atentos para os passos necessários a serem dados nesse caminho, por isso damos ênfase à necessidade de constituir um sujeito revolucionário capaz encarar como fundamental nesse caminho aquilo que Lênin, em sua vasta obra, sempre frisava: a questão do poder. É por essa razão que estamos em desacordo com a maneira que o camarada expõe a superação da sociedade capitalista. A construção de um movimento revolucionário exige muito mais do que frases como "a superação das relações capitalistas conduzirá necessariamente à apropriação social das fontes de vida". Apesar de correta, ela é abstrata. Não se trata somente, tampouco, de se "preparar a sociedade para a superação do capitalismo". Nos parece mais objetivo falar em construção programática de um movimento revolucionário que exproprie e socialize as forças produtivas fundamentais de nossa sociedade - duas tarefas indissociáveis e necessárias, esquecidas pelo movimento operário de nosso século, e também único instrumento capaz de superar a coisificação das relações sociais. Onde estão estas forças produtivas fundamentais parece-nos ser, assim, a questão central. Sem dúvida que estão sob o domínio do capital monopolista mundial.

Em linhas gerais, essas foram as questões que a correspondência enviada pelo camarada suscitou em nosso grupo. Ficamos extremamente satisfeitos com a atenção dedicada ao nosso documento, e impressionados, particularmente, com os pontos de convergência existentes. Esperamos ser esse apenas o início de um debate que contribua, cada vez mais, com a luta pela construção de uma sociedade livre de toda exploração e opressão capitalistas. Saudações Revolucionárias.

 

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