Comentários críticos sobre as Teses

Euler Conrado

Aos camaradas do contraacorrente:

  Primeiramente, saudações. Recebi as publicações contendo as formulações que vocês vêm desenvolvendo. Gostaria de comentar, modestamente, sobre as Teses Sobre a Estratégia Revolucionária - ao que parece, a síntese das idéias básicas que o contraacorrente vem acumulando. Em linhas gerais, estou de acordo com vários pontos das Teses. Contudo, encontro ali, também, formulações com as quais não estou inteiramente de acordo e sobre as quais falarei a seguir.

Comecemos pelo título: "Expropriar o capital monopolista, superar o mercado e o Estado". Por que expropriar "apenas" o capital monopolista (mesmo sabendo que este representa a hegemonia...) e não todo o capital? A seqüência da frase nos dá outra respostas: "superar o mercado (ou a mercadoria...) e o Estado". À primeira vista, tem-se a impressão de que ser trata de duas idéias diferentes: uma, a da expropriação do "capital monopolista", prisioneira ainda da produção de valores; a segunda, ao contrário, buscando libertar-se da forma-valor. Mas não nos deixemos levar pela aparência e passemos à análise do texto como um todo.

Na parte primeira da tese, estou quase totalmente de acordo com a análise desenvolvida. Não concordo com a última frase, a qual é melhor desenvolvida no ponto 2 das teses. A própria produção mercantil capitalista - e não propriamente o monopólio no estágio atual - teve sempre, como característica essencial, a socialização da produção em contraste com a apropriação privada das riquezas. A monopolização, como conseqüência deste processo, não me parece ser o alvo privilegiado a ser atacado, mas sim o capital, enquanto relação social.

Estou de acordo com os pontos 3 e 4, merecendo destaque a conclusão de que o capital se autodestrói ao reproduzir-se. A tese 5 (e adendo que lhe segue) é síntese do comentário que fiz inicialmente. Procura-se conciliar a idéia da "expropriação dos monopólios" com a necessidade de superação como um todo das relações sociais capitalistas. Abstraindo-nos do sentido dado nas teses, é necessário lembrar que a idéia da "expropriação dos monopólios" está ligada à fórmula antiga adotada pelo movimento comunista no período da existência do "socialismo real". Segundo esta fórmula, seria necessário expropriar as fontes fundamentais de vida, que passariam para as mãos de um Estado dito "operário" e manteria a reprodução do valor ainda por longas décadas. As próprias teses reconhecem nesta fórmula não a superação mas a "realização" do capital. No que estamos de acordo. "A expropriação do capital monopolista só terá um significado efetivamente anticapitalista se avançar para a socialização de suas forças produtivas (... ) se superar sua própria forma capital (...) que se realiza na produção de mercadorias e na troca privada". (Tese 5, adendo). Reconhece-se que a "expropriação" dos monopólios não é, em si, uma medida "efetivamente" anticapitalista, o que só se realizará com a "socialização de suas forças produtivas". Surge aqui um hiato entre a expropriação e a socialização, que é explicado com a necessidade, que se observa nas Teses, de um período de transição. Sobre este ponto estou em desacordo com os camaradas. O próprio Marx, em sua vasta obra, alimentou a idéia da transição ao comunismo como uma etapa necessária. Especificamente no seu Crítica ao programa de Gotha, Marx define esta etapa como estando submetida ainda às leis da troca mercantil. Marx estabeleceu uma relação de dependência entre a superação deste estágio com o avanço das forças produtivas, quando estas "jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva" (Marx), a partir do que se poderia passar para o comunismo, sem a troca de mercadorias. Por este critério, levando-se em conta o desenvolvimento da técnica e da ciência no estágio atual, esta etapa já não mais se justificaria. Mas parece-me que não é esta a questão central - não exatamente em função do maior ou menor grau de desenvolvimento das forças produtivas, mas sim, da possibilidade ou não de se caminhar para além do capital, deste tipo historicamente dado de relação social. A conclusão a que chegamos é a de que esta possibilidade está dada desde que o capital tornou-se uma relação hegemônica.

No ponto 6, especialmente no Adendo, procura-se justificar a luta antimonopolista com as contradições que amplos setores da sociedade teriam com os monopólios. A luta pelo fim da forma-mercadoria deixa de ser o centro da discussão e torna-se uma preocupação futura. Ora, se não se prepara a sociedade para a superação do capitalismo, o que se cria em seu lugar é uma falsa expectativa: a de, num primeiro momento, expropriar os monopólios como forma não de "socializar" (isto assustaria os aliados...) mas como forma, provavelmente, de garantir a reprodução do valor. Ainda que, contraditoriamente, as Teses negem este objetivo. Afinal, de que "aliados" estamos falando quando apresentamos uma preocupação "tática" intermediária? Dos milhares de camponeses e sem-terras? Dos milhões de pequenos e médios proprietários; os profissionais liberais, ou cooperativos, que são ao mesmo tempo proletários e patrões? E o que dizer dos bilhões de excluídos e desempregados? Acho que já é tempo de convidar toda esta gente para uma reflexão aberta pela necessidade de superação de um tipo de sociedade, historicamente dado, que não serve à humanidade. Caso contrário será mesmo necessário não apenas "expropriar" monopólios mas criar um poderoso Estado para "administrar" as contradições e interesses privados destes setores. O próprio proletariado, cada vez numericamente mais reduzido, não tem introjetado em si, a priori, a necessidade histórica de superação do capital. E parece-me que esta questão deve ser colocada sem mediações, sem transição.

O ponto 7 das Teses, especialmente o seu I Adendo, resgata em grande medida a crítica à forma-mercadoria que Marx brilhantemente desenvolveu nos capítulos I e II de O Capital. Não havendo a superação da coisificação das relações humanas, continua-se prisioneiro da reprodução capitalista. Isto, seguramente, não ocorrerá com a expropriação de monopólios ou com a estatização de parcelas fundamentais das fontes de vida. Terá que surgir da luta consciente da humanidade pela superação deste tipo de relação social. Neste contexto, a luta antimonopolista não encontra razão de ser, já que o que se pretende, de fato - e isto é citado repetidamente nas Teses - é superar a troca mercantil, o Estado, enfim, o capitalismo. Não se pretende descentralizar uma economia que encontra-se centralizada nas mãos de poucos monopólios; nem tampouco se pretende estatizá-la ou "nacionalizá-la". Ora, o que está em jogo não é propriamente a "expropriação dos monopólios" mas a mudança de sistema social. E não me parece que o primeiro conduza automaticamente ao segundo. Deveria ser o oposto: a superação das relações capitalistas conduzirá necessariamente à apropriação social das fontes de vida. Quero crer que a utilização da expressão "expropriar os monopólios" não seja uma questão de semântica, mas parte de um fundamento: a crença da necessidade, ainda, por um período de tempo, da existência de uma transição com base na reprodução do valor. Crença esta que as Teses procuram negar - ao mesmo tempo em que a afirmam - em várias passagens. Caso contrário, a utilização desta expressão tornar-se-ia vazia de sentido.

Nesta mesma linha está situada a questão do Estado e das formas políticas e jurídicas atuais. A par de reconhecer tais formas como reforçadoras do capital e de aperceber-se do desgaste das mesmas em função da "economização"  da vida, as Teses mantêm válida a necessidade de se participar nestes terrenos, "com o objetivo de desvendar sua verdadeira essência" (Tese 11). Ao longo das últimas décadas, a vida tem demonstrado que a participação no terreno da política tradicional não apenas não tem "desvendado a essência" burguesa destas instituições, como, ao contrário, reforçou a crença na democracia burguesa; crença esta só abalada pela própria redução da margem de ação neste terreno, ocasionada pela reprodução capitalista no seu estágio atual. Não vejo porque se deva carregar toda a herança pesada do movimento comunista "tradicional". Há que se reconhecer que a retomada da crítica elaborada por Marx ao capital representa uma ruptura - não uma continuidade - com as práticas e os dogmas acumulados durante mais de um século.

Finalmente, endosso a visão internacionalista  apresentada pelos camaradas, a qual se contrapõe ao nacionalismo vulgar que a quase totalidade da chamada "esquerda tradicional" cultiva de forma religiosa. Infelizmente, estes senhores não se conformam de não terem participado do período da acumulação primitiva de capitais e sonham - melhor, deliram - com saídas "nacionais soberanas". Apegam-se às instituições reforçadoras da reprodução do "valor" e rezam pela cartilha de Estados nacionais "soberanos". Resta-nos acender uma vela para eles.

Cabe destacar, ainda, o esforço teórico e prático, objetivando, de um lado, a formulação de uma crítica radical à sociedade capitalista, e de outro, a busca de uma reflexão com aqueles que se disponham a construir coletivamente uma sociedade livre das relações capitalistas. Este é, sem dúvida, outro ponto que temos em comum. Abraços.


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