A atualidade da crítica do Estado

Emiliano Aquino

"Todos os socialistas estão de acordo em que o Estado político, e com ele toda autoridade política, desaparecerão em conseqüência da próxima revolução social, ou seja, as funções públicas perderão seu caráter político, transformando-se em  simples funções administrativas, chamadas a velar pelos verdadeiros interesses sociais" (Engels, Sobre a autoridade, 1874).

 

O século 20 foi o século do estatismo, isto é, da ideologia do Estado como esfera pública, universal e emancipatória, esfera a partir da qual os problemas comuns dos homens poderiam ser resolvidos racionalmente. Que as classes dominantes e suas expressões ideológicas assumissem tal posição, nada de estranho, afinal, o Estado lhes pertence: nada mais natural, portanto, que elas apresentem o seu poder como o poder de toda a sociedade. Ora, o mais estranho, no entanto, é que a ideologia estatista tenha caracterizado à própria esquerda, como é fato, mais do que a nenhuma outra corrente política. 

Marx, crítico do Estado  

Essa trajetória estatista da esquerda não pode, de modo algum, ser reputada a Marx e Engels. Pelo contrário, a crítica do Estado é um componente inseparável da crítica marxiana da sociedade burguesa, como demonstram já as suas primeiras obras comunistas (como os ensaios publicados em 1843, nos Anais franco-alemães, intitulados "A questão judaica" e "Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel"). Nessas reflexões iniciais, nas quais não está ainda presente a crítica da economia política, Marx denuncia o caráter abstrato do Estado político moderno, na medida em que a sua universalidade se baseia precisamente sobre a real diferença no nível econômico-social dos indivíduos: "Longe de acabar com tais diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua universalidade apenas em contraposição a tais elementos", diz Marx. Identificando na figura do "cidadão" o membro do Estado político e, na do "homem", o burguês, o membro da "sociedade civil-burguesa" (esfera das relações econômico-sociais burguesas), Marx afirmava que o cidadão nada mais é do que a capa do "burguês" (bourgeois) e este é apresentado pela ideologia burguesa como sendo a encarnação do homem em geral. Assim, conclui Marx, a emancipação política efetivada pelo Estado moderno é a emancipação do homem como membro do Estado, isto é, uma emancipação política do próprio Estado, mas não ainda a verdadeira emancipação humana: é que o Estado pode ser livre (como o é o Estado moderno), sem que o homem o seja em suas condições reais de vida.

Essa percepção do caráter abstrato e limitado da política frente às verdadeiras condições em que deve se dar a emancipação humana iria ganhar concretude precisamente na medida em que avançasse a pesquisa de Marx sobre a economia política. Se nestes primeiros textos juvenis, Marx ainda trata da relação entre a esfera da política e a da sociedade civil-burguesa nos termos da oposição entre a universalidade abstrata do Estado e o particularismo burguês, já em O capital a crítica da economia política lhe permite avançar na crítica do Estado, do direito e da política a partir da própria crítica do mercado, do dinheiro e do capital.

Ora, em O capital, o raciocínio de Marx é simples: a troca de mercadorias, enquanto uma troca de equivalentes (coisas de mesmo valor), em seu processo histórico de universalização, como ocorreu no capitalismo, exige a igualdade jurídica de seus portadores privados. Isto é, o reconhecimento jurídico da igualdade entre os indivíduos como portadores privados de mercadorias é uma condição necessária à universalização da produção e da troca mercantis. No entanto, dinheiro e mercadorias, por si só, não são capital. O que caracteriza o capitalismo é, antes de tudo, a produção de mais-valia. A produção de mercadorias é tanto condição quanto modo de realização da produção de mais-valia: o seu elemento central é a própria força de trabalho humana como mercadoria. Somente sob esta condição é que todo o produto do trabalho humano assume a forma de mercadoria e, principalmente, a própria mais-valia pode ser produzida. Mas quais são as condições históricas para que a força de trabalho possa ser mercadoria? Que o produtor direto (trabalhador) seja livre em dois sentidos: primeiro, livre (despossuído) de meios de produção e que, portanto, tenha que vender sua força de trabalho para sobreviver; segundo, que seja juridicamente livre, isto é, que mantenha com o capitalista uma igualdade jurídica. Capitalista e proletário são ambos portadores de dinheiro e mercadoria, mas não simplesmente portadores de dinheiro e mercadoria como nas produções pré-capitalistas de mercadorias. O que os torna respectivamente capitalista e proletário é que a mercadoria que eles estão intercambiando é a força de trabalho, mercadoria que, em seu uso, produz um valor superior ao seu próprio (portanto, mais-valia). Somente aqui nós temos a vigência própria do capital segundo a sua lógica da autovalorização.

É nesta relação de alienação do trabalho, raiz de todas as alienações, que se realiza a igualdade jurídica. O Estado moderno é, na história da humanidade, o primeiro Estado verdadeiramente político, fundado no direito e na igualdade jurídica universal; e isto não ocorre à toa: é porque é o primeiro Estado fundado na produção e no intercâmbio universais de mercadorias. O modo de ser do Estado moderno tem sua essência no modo de ser da economia moderna e, como ela, baseia-se na abstração própria ao trabalho produtor de valor: o trabalho abstrato. O Estado, o direito e a política são "esferas" das relações humanas tão alienadas quanto a "esfera econômica" que lhes institui e domina. No mercado, a relação entre os indivíduos é indireta, isto é, realizada através da troca de dinheiro e mercadoria, segundo a lei própria das trocas mercantis e não segundo a livre e autônoma decisão dos homens; os indivíduos aparecem uns para os outros nas formas coisificadas de portadores de valores, como "capitalistas", "proletários" etc. Do mesmo modo, na esfera do Estado, do direito e da política, as relações entre os indivíduos são indiretas, são relações por meio de uma esfera que se ergue por cima de suas vidas reais, cotidianas. Nessas relações, os indivíduos não aparecem como o que são, mas segundo as formas abstratas e coisificadas do "cidadão", do "eleitor", do "reclamante", do "reclamado" etc. São relações, enfim, fundadas em leis jurídicas elaboradas segundo as necessidades da economia mercantil e, portanto, tão abstratas quanto esta.

Pensar a "esfera" do Estado e do direito por este ponto de vista quer dizer, antes de tudo, que ela nada mais é do que a forma jurídica que medeia as relações entre os portadores privados de mercadorias, isto é, eles são a forma jurídica própria da troca privada universalizada, e isto é o que caracteriza o capitalismo e somente ele. Mas quer dizer também que o Estado, o direito e a política se situam na lógica da troca de equivalentes (que regula as trocas mercantis) e que, segundo essa lógica, tanto viabiliza quanto obscurece a essência do sistema que é a troca de não-equivalentes no ciclo completo do capital (D-M-D'), no qual dinheiro se converte em mais dinheiro através da exploração do trabalho vivo. Como sabemos, Marx demonstra que o ciclo do capital se compõe de duas fases: D-M, compra de meios de produção e força de trabalho, e M-D, venda das novas mercadorias produzidas. Ambas as fases se regulam pela troca de equivalentes, mas o ciclo completo D-M-D' revela uma não-equivalência pelo valor a mais que aparece no final. Ao final da primeira fase D-M, as mercadorias compradas (meios de produção e força de trabalho) são retiradas da circulação e consumidas: é neste consumo, no nível da produção, que a própria mais-valia é produzida. Quando, na segunda fase M-D, as novas mercadorias voltam à circulação, são trocadas por dinheiro segundo a lei de equivalentes. Portanto, em todo o seu circuito na esfera da circulação, que é a esfera aparente da economia capitalista, o dinheiro e as mercadorias (incluindo a força de trabalho) se trocam entre si segundo a equivalência. Mas esta equivalência é apenas a aparência sob a qual e pela qual (já que a aparência também é parte da realidade) torna-se possível a produção de mais-valia e, portanto, o movimento autovalorativo do capital.

Quando dizemos que o Estado, o direito e a política situam-se na esfera aparente da troca universalizada de equivalentes, dizemos em conseqüência que compõem o próprio sistema de autovalorização do capital. São, portanto, não um "reflexo" separado, uma conseqüência, mas um componente absolutamente indispensável - enquanto forma - para que se dê a produção e a circulação de mercadorias e dinheiro, meios pelos quais o dinheiro se autovaloriza. O mercado e o Estado constituem, portanto, um sistema único de alienações que se baseia na exploração do trabalho vivo e na impossibilidade de - no capitalismo - os homens terem controle sobre suas próprias atividades e relações econômicas.

Marx, Engels e a crítica do anarquismo  

Essa crítica marxiana do Estado é essencialmente distinta da crítica dos anarquistas. Para estes, o Estado é a fonte de todo o mal. A sua destruição seria, portanto, o ponto crucial da libertação dos trabalhadores. Ora, mas com isso a crítica anarquista permanece no campo da "ideologia política", isto é, na ilusão de que o Estado, o direito e a política são autônomos frente à economia a ponto de serem os seus sujeitos. É uma crítica que, portanto, não parte da crítica da economia política (na verdade, não há um só teórico anarquista importante que possua uma crítica da economia política).

A verdadeira divergência não está em se o Estado deve ou não ser ultrapassado. Mas sim: quais as condições dessa ultrapassagem? Enquanto a crítica de Marx parte da própria crítica da economia capitalista, os anarquistas limitam-se à crítica da política, sem considerar como fundamental a sua base real. É assim que chegam à conclusão de que os trabalhadores não devem "fazer política". Ora, a insistência de Marx do caráter necessariamente político da luta revolucionária pretendia apenas demonstrar que a luta contra o Estado, antes e mesmo durante o período de transição à sociedade sem classes, "ainda" assumia "formas políticas" pela necessidade de combate ao próprio Estado. Em outras palavras, Marx insistia na necessidade de o proletariado tornar-se "classe dominante" a fim de impor à força as transformações econômico-sociais necessárias à extinção das próprias bases do Estado existente, isto é, da economia mercantil.

Mas o que significa o proletariado tornar-se "classe dominante"? Nas palavras de Marx: "Significa que o proletariado, em vez de lutar de um modo desconexo contra as classes economicamente privilegiadas, possui já força e organização suficientes para empregar, em sua luta contra elas, medidas gerais de coação; mas, no terreno econômico, só pode empregar medidas que destruam seu próprio caráter de assalariado e, por conseguinte, suas características de classe. Portanto, com seu triunfo completo cessará também sua dominação, ao cessar seu caráter de classe" (Marx, Anotações ao livro de Bakunin "O Estado e a anarquia"). Prestemos atenção: o proletariado deve, como classe dominante, destruir "seu próprio caráter de assalariado", isto é, impor novas relações sociais nas quais a força de trabalho não seja mais uma mercadoria, superando, assim, a dominância da lógica do mercado sob a produção social (pois, segundo Marx, somente numa sociedade onde a força de trabalho é uma mercadoria é que todos os produtos do trabalho também o são). Somente a partir dessa realização prática da crítica da produção mercantil é que desaparecem as classes e a própria dominação de classe.

Mas, a ascensão do proletariado à posição de classe dominante não significa, de modo algum, a conquista do "poder de Estado" (apesar de esta ser uma expressão que em alguns momentos estejam nos textos de Marx e de Engels). Como demonstrou o próprio Marx em sua análise da Comuna de Paris, não basta ao proletariado assumir o comando do Estado existente (o "velho Estado"), é preciso destruí-lo, substituindo-o, como o fizeram os comunardos de 1871, pelo seu poder direto. Esta análise, aliás, é o argumento principal de Engels para afirmar, no Prefácio de 1872 a uma nova edição do Manifesto, que o programa de ação proposto naquele documento de 1848, já havia "envelhecido". Este programa de ação afirmava, em sua maior parte, a necessidade de "estatização" dos meios de produção. O que causara seu envelhecimento teria sido, justamente, a experiência de destruição do Estado pela Comuna de Paris. Segundo o próprio Engels, a Comuna teria demonstrado que o poder direto do proletariado organizado já "não é um Estado no sentido verdadeiro da palavra". O que Engels tem em mente ao afirmar isso é o fato de que o Estado é, como ele demonstrará em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, um "poder que se ergue sobre a sociedade". Ora, o poder do proletariado é a primeira forma do auto-poder da sociedade. Aqui já está superada toda a alienação essencial do Estado e da política, na medida em que seja um poder que destrua a dominância do mercado. Afinal, não podemos pensar, de modo algum, na superação da alienação do Estado e da política enquanto os homens não tiverem - no "terreno econômico" - superado a própria alienação inerente ao mercado, no qual eles se relacionam segundo uma lógica que não é a sua, mas segundo a lógica da troca de equivalentes e da autovalorização do capital.

É nesta perspectiva que Marx e Engels fizeram a crítica do "Estado popular" proposto por Ferdinand Lassalle, dirigente operário do século passado, cujas idéias influenciaram diretamente as teses aprovadas no congresso de fundação do partido socialdemocrata alemão (1875). Contra estas teses, Marx escreveu a Crítica ao programa de Gotha. Neste texto, de grande atualidade, Marx rejeita claramente a proposição teórica do "Estado popular livre" e da resolução do "problema social" a partir da criação - pelo Estado - de "cooperativas de produção" na agricultura e na indústria. Marx apresenta criticamente a posição lassalleana do programa de Gotha nos seguintes termos: "A 'organização socialista de todo o trabalho' não é [segundo o programa] o resultado do processo revolucionário de transformação da sociedade, mas 'surge' da 'ajuda do Estado', ajuda que o Estado presta às cooperativas de produção 'criadas' por ele e não pelos operários". A crítica fundamental ao caráter reformista do programa de Gotha, Marx a identifica principalmente em que: "em vez de tomar a sociedade existente (e o mesmo podemos dizer de qualquer sociedade no futuro) como base do Estado existente (ou do futuro, para uma sociedade futura), considera mais o Estado como um ser independente, com seus próprios fundamentos espirituais, morais e liberais". Mas essa crítica não poderia ser dirigida nos mesmos termos também à crítica anarquista do Estado?

Ora, o fato de que o partido fundado em Gotha tenha sido fruto da fusão entre lassalleanos (Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundada por Lassalle) e eisenachianos (Partido Operário Socialdemocrata Alemão, fundado na cidade de Eisenach, e com o qual Marx e Engels possuíam estreitas relações desde a AIT) contribuiu para a lenda - particularmente divulgada por Bakunin e seus seguidores - de que o conceito marxista de ditadura do proletariado correspondesse ao "Estado livre" de Lassale. O próprio Bakunin, em O Estado e a anarquia repete dezenas de vezes a expressão "teoria de Lassalle e Marx do Estado popular"... Na verdade, essa lenda se fortalecia porque, de fato, o programa dos eisenachianos já continha a reivindicação do "Estado popular livre". No entanto, essa lenda desfaz-se de maneira simples, se se tem em vista, por exemplo (e os exemplos poderiam ser vários), o seguinte trecho de Engels sobre o programa de Gotha: "Devia-se ter abandonado todo esse charlatanismo acerca do Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado no verdadeiro sentido da palavra. Os anarquistas nos lançaram repetidamente à face essa coisa de 'Estado popular', apesar de que já a obra de Marx contra Proudhon [A miséria da filosofia, 1847], e em seguida o Manifesto Comunista [1848] dizem claramente que, com a implantação do regime social socialista, o Estado se dissolverá por si mesmo e desaparecerá". E, ao final do parágrafo, afirma: "nós proporíamos que fosse dita sempre, em vez da palavra Estado, a palavra 'Comunidade', uma boa e antiga palavra alemã que equivale à palavra francesa 'Commune'" (Carta a August Bebel). Ora, a partir da experiência da Comuna de Paris, a ditadura do proletariado passou a ser pensada por Marx e Engels exatamente nos termos de uma auto-organização social que já não seria mais precisamente um Estado. Tanto que, na Introdução de 1891 à Guerra civil em França, de Marx, Engels exclama: "Quereis saber o que é a ditadura do proletariado? Olhai a Comuna de Paris!"

Lênin, a Revolução Russa e a questão de Estado  

Em agosto de 1917, Lênin publica seu famoso (e muito mal lido) O Estado e a revolução. Na verdade, este livro não tem apenas um interesse teórico, mas antes, sobretudo, prático. Tratava-se, primeiramente, de recuperar a crítica do Estado presente nas obras de Marx e Engels, elaborando, através desta recuperação teórica, uma concepção programática - acerca do Estado - para a "revolução proletária universal em maturação" (Lênin, Prefácio à primeira edição).

Na verdade, a tradição "leninista" ou "trotskista" que daí se seguiu manteve, da crítica de Lênin, apenas o reconhecimento do caráter de classe de todo Estado, o seu caráter ditatorial. No entanto, a recuperação teórica que Lênin faz é bem mais ampla e mais rica: ele se atém, cuidadosamente, a características essenciais do Estado, apresentados por Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, tais como o fato de que ele é um fenômeno próprio a uma sociedade marcada pelo antagonismo de classes (o que, por si só, negaria a sua permanência no socialismo), erguendo-se, a partir desse antagonismo, "aparentemente acima da sociedade", isto é, como uma "força que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais" (Engels, obra citada). Desse seu caráter essencial é que decorreria um "traço característico" de todo Estado que é, segundo Engels, "a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada", à qual correspondem "elementos materiais, prisões e instituições coercitivas de toda espécie". Como é necessário - para manter toda essa superestrutura coercitiva - a cobrança de impostos e a existência de uma dívida pública, o Estado se constitui também de um corpo de funcionários sobre o qual a sociedade não mantém nenhum controle e os quais, pelo contrário, "são colocados acima da sociedade". Essa estrutura completamente alienada da sociedade, produto de seu antagonismo de classes, é, no entanto, a materialização política do poder econômico das "classes materialmente privilegiadas".

Engels, nesta análise, não está fazendo uma reflexão específica sobre o Estado burguês moderno e as relações que ele manteria com as características específicas da economia moderna, isto é, a economia mercantil.  Ele está falando de todo Estado. Como sabemos, Marx denuncia, em O capital, a autonomização - numa sociedade produtora de mercadorias - das relações sociais frente aos indivíduos, tornando-as obscuras e deles independentes; diferentemente, as relações sociais anteriores, pré-capitalistas, ainda que marcadas pela exploração de classe, eram relações absolutamente claras aos indivíduos, os quais mantinham (pelo menos, as classes dominantes) completo controle sobre elas . É-nos permitido, portanto, afirmar que, enquanto componente da economia moderna, o Estado moderno é muito mais alienado do que os Estados de classe anteriores. O próprio fato de que no Estado moderno, diferente das estruturas estatais anteriores, a "esfera política" se diferencie da "esfera econômica" é um indicativo dessa diferença. Nos Estados antigos havia um controle direto do Estado pelas classes dominantes; no Estado moderno, esse controle é indireto: medeia-se tanto pela concorrência entre as diversas frações burguesas, pelas relações de força entre elas e delas com outras classes sociais, pelos reflexos no nível político do desenvolvimento desigual e combinando da economia capitalista etc. O seu conteúdo, no entanto, sempre permanece: a manutenção da forma privada de apropriação da produção social, seja na forma da propriedade privada dos meios de produção, do salário, do lucro, etc. Isto é o que explica fenômenos históricos, como o do bonapartismo (analisado por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte), nos quais outras classes e forças sociais deslocam politicamente a burguesia do poder, mantendo, no entanto, essencialmente a mesma função histórica: neste caso estudado por Marx, o bonapartismo tinha como base os camponeses e cumpriu a função histórica de manutenção da propriedade privada, forma sob a qual as relações capitalistas de produção puderam se desenvolver. Há que se levar em conta, inclusive, o fato de que a exploração econômica no capitalismo dá-se por vias propriamente econômicas, pelo mecanismo autônomo do mercado, diferentemente das formas anteriores de expropriação, que se viabilizavam por vias extra-econômicas, tais como a coerção jurídica no feudalismo. Esta autonomia da economia é o que, de fato, torna o Estado mais dependente da economia do que o inverso.

Apesar de não desenvolver este raciocínio em A origem..., Engels, no entanto, o pressupõe quando afirma: "O Estado representativo moderno é um instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital. Há, no entanto, períodos excepcionais em que as classes em luta atingem tal equilíbrio de forças, que o poder público adquire momentaneamente certa independência em relação às mesmas e se torna uma espécie de árbitro entre elas".

O resgate desses elementos fundamentais da crítica marxista do Estado (não podemos percorrer todo o livro de Lênin), representou de fato a retomada da posição anti-estatista presente no pensamento de Marx e Engels. No entanto, isto não impediu que o próprio Lênin terminasse por trazer, de contrabando, o velho espírito estatista que buscou combater. Como o centro de sua polêmica com a socialdemocracia era a afirmação da necessidade da destruição revolucionária do Estado burguês, Lênin terminou - acriticamente - por fortalecer a idéia da permanência do Estado (alterando-se seu caráter de classe), após a revolução proletária. Do ponto de vista temático, isto ocorre no modo como ele enfrenta a polêmica - que é o centro do primeiro capítulo de seu livro - acerca da "abolição" revolucionária do Estado burguês e o "definhamento" paulatino do "Estado proletário". Com esta colocação, ele procura se opor tanto à concepção anarquista da abolição do Estado, sem a prévia ascensão do proletariado como classe dominante (ditadura do proletariado) e superação da economia mercantil, como - e principalmente - a recusa da socialdemocracia a abolir violentamente o Estado burguês. Colocado a questão nesses termos, não teríamos sobre ela nenhuma dúvida. No entanto, o problema teórico é a formulação - insistentemente repetida em todo o livro - da ditadura do proletariado como sendo um "Estado proletário".

Com certeza, poderíamos encontrar termos semelhantes nos próprios textos de Marx e Engels. Marx, na Crítica ao programa de Gotha, por exemplo, utiliza expressões como "Estado na sociedade comunista", ou ainda afirmações como a de que no período de transição à sociedade comunista o "Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado". Ora, segundo explica o próprio Marx, ele fala de Estado, quando se refere à sociedade comunista, apenas no sentido das "funções sociais, análogas às atuais funções do Estado" na sociedade capitalista. Trata-se, aqui, chamamos a atenção de uma analogia. É no mesmo sentido de estabelecer uma analogia (o que, portanto, significa que não se mantém a mesma lógica) que ele se refere à ditadura do proletariado como sendo o "Estado" no período de transição à sociedade sem classes, isto é, na medida em que a ditadura do proletariado expressará o poder de classe do proletariado, tal como o Estado no capitalismo expressa o poder de classe da burguesia.

O próprio Engels, no Anti-Dühring (que Lênin cita), afirma que "O proletariado se apodera da força do Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado". Tomada isoladamente, essa afirmação pareceria confirmar toda a perspectiva estatista que marcou o movimento operário no século 20. No entanto, é preciso recusá-la para que possamos, teoricamente, manter uma compreensão rigorosa acerca da crítica marxista do Estado. Aliás, esta frase de Engels só se esclarece se se tem em conta o desenvolvimento do texto, o qual afirma logo adiante que: "O primeiro ato pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade - a posse dos meios de produção em nome da sociedade - é, ao mesmo tempo, o último ato próprio do Estado". Trata-se, aqui, mais uma vez de "Estado" apenas em analogia com o que o Estado é na sociedade de exploração, isto é, uma força política, uma força que expressa um determinado poder de classe através da força militar. Mas, como o próprio Lênin chama a atenção, já não se tratará aqui do poder da minoria sobre a maioria, mas, ao contrário, da maioria sobre a minoria: em conseqüência, já não será um poder acima da sociedade, mas o poder da maioria da sociedade auto-organizada; já não se efetivará através de um corpo armado destacado da sociedade, nem de um corpo burocrático de funcionários sobre os quais a sociedade não tem nenhum controle. Efetivamente, já não se tratará de um Estado "no sentido verdadeiro da palavra" (Engels), embora "ainda se mova sob formas políticas" (Marx). Isso quer dizer, efetivamente, que a revolução proletária não significará apenas a mudança do controle de classe sobre o Estado, ou a substituição de um Estado de classe por outro, mas, efetivamente, a destruição revolucionária do Estado (em sua última forma histórica: o Estado burguês) e sua substituição pelo poder da auto-organização da maioria da sociedade. Essa forma histórica de poder já não mantém qualquer continuidade essencial do Estado, a não ser do ponto de vista formal (seria melhor dizer "analógico"): mantém "ainda" as "formas políticas" da coerção como meio de expropriação da burguesia e a socialização dos meios de produção.

Ora, quando Lênin, em O Estado e a revolução, mantém insistentemente a expressão "Estado proletário", não se trata de um vício de linguagem, o qual poderíamos neutralizá-lo tendo em vista a lógica fundamental de seu livro. Ao contrário, ele na verdade "avança" num elaboração ideológica acerca do "Estado proletário", cunhando-o de "semi-Estado". Este "conceito", para Lênin, traduziria a constatação de Engels (baseada na experiência da Comuna de Paris) de que o poder proletário "já não é um Estado no sentido verdadeiro da palavra". Formulado deste modo, este "conceito" de "semi-Estado" é profundamente perigoso. Aos usos que Marx e Engels fazem da palavra "Estado" para referirem-se à organização social da ditadura do proletariado ou mesmo do socialismo, podemos opor uma concepção crítica do Estado por eles formulada, concepção crítica esta que legitimaria - a fim de se evitar confusões teóricas - uma recusa a tais usos terminológicos ou analógicos. No caso do conceito de Lênin, essa possibilidade desaparece, pois o conceito de "semi-Estado" incorpora, neutralizando, a crítica do Estado. É isto que permite, então, que se fale (e se pense) alternadamente nos termos de "semi-Estado" ou simplesmente "Estado proletário".

A insistência de Lênin acerca do "Estado proletário" transcresce, no decorrer do livro, ao "conceito" (mais perigoso ainda!) de "Estado socialista", referindo-se não mais simplesmente à ditadura do proletariado (e, portanto à transição ao socialismo). Mais uma vez, não se trata de um erro de linguagem. Na Crítica ao programa de Gotha, Marx afirma a permanência no socialismo ("primeira fase da sociedade comunista") do "direito burguês", como princípio da repartição dos produtos do trabalho, isto é, o princípio de que o critério da distribuição (a saber, de acordo com a quantidade de trabalho individual) deveria ser igual para todos, sem se levar em conta as diferentes necessidades e diferentes possibilidades individuais. Em O Estado e a revolução, Lênin, sem qualquer necessidade lógica com a própria afirmação de Marx (e, na verdade, contrapondo-se a ela), deduz daí que "subsiste a necessidade de um Estado que, embora conservando a propriedade comum dos meios de produção, conserva a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição". E acrescenta: "o Estado não sucumbiu de todo, pois que ainda resta salvaguardar o 'direito burguês' que consagra a desigualdade de fato. Para que o Estado definhe completamente, é necessário o advento do comunismo completo". Sem dúvida, Lênin reconhece que, no socialismo, o "Estado morre na medida em que não há mais classes e em que, por conseguinte, não há mais necessidade de esmagar nenhuma classe". Ora, mas se é assim, se já não haverá diferenças de classe, mas apenas diferenças individuais (como o próprio Marx, aliás, deixa muito claro), por que falar em "Estado"? No entanto, não é assim que Lênin raciocina, mas de modo oposto: "O direito burguês, no que concerne à repartição [na 'primeira fase do comunismo', o socialismo], pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas". Agora, já não se trata nem mais de "Estado socialista", mas sim de "Estado burguês"! Nesta conclusão, Lênin já não está, de modo algum, recuperando a "doutrina" (na verdade, a crítica) de Marx e Engels sobre o Estado, mas criando uma doutrina própria, marcadamente estatista.

A permanência - ainda que marginal - da ideologia estatista no pensamento de Lênin deveria, necessariamente, ter conseqüências práticas no desenrolar da revolução russa. Não se pode, naturalmente, pensar o desenvolvimento real da revolução russa como desdobramento das posições teóricas de seus dirigentes, mesmo em se tratando de Lênin, o principal deles. No entanto, esses erros teóricos de Lênin - e precisamente por ele ter sido o dirigente de maior influência sobre a vanguarda revolucionária - não poderiam deixar de influenciar a consciência e a atitude dos revolucionários russos. Quando, efetivamente, o isolamento da revolução russa (devido, principalmente, à traição da socialdemocracia na Alemanha), o atraso econômico da Rússia, a guerra civil e o ataque dos exércitos imperialistas determinaram o enfraquecimento e o posterior esvaziamento dos soviets, a ideologia estatista terminou ganhando dimensões imprevistas na vanguarda bolchevique, determinando, em muitos casos, a sua atitude. A estatização dos meios de produção (isto é, a sua não socialização, que foi uma imposição prática do atraso russo e do isolamento da revolução) foi acompanhada da própria "estatização da revolução": a cristalização de "instituições estatais" sobre as quais - e não poderia ser diferente, já que se tratavam de "instituições estatais" - as massas não mais tinham qualquer controle. Em contrapartida, o próprio partido bolchevique passou a ser - antes que a contra-revolução stalinista o destruísse física e programaticamente - o único órgão de poder real na Rússia revolucionária. Na prática, o partido - agindo, a fortiori, como uma representação autonomizada da classe - substituiu os soviets como órgãos de poder de classe.

Não se pode, insista-se, encontrar nessas concepções de Lênin a causa da degeneração da revolução russa e mesmo da reconstrução do Estado (reconstrução que se deu sobre os escombros dos soviets). Na verdade, estes fenômenos se deram por determinações históricas muito mais amplas, cuja reconstrução historiográfica e sua explicação teórica estão ainda por ser feitas. A história não é a história das idéias, mas dos atos, dos conflitos, das relações de força. E, sem dúvida, a derrota real da revolução russa não foi nem interna, nem teórica, mas antes uma derrota prática na arena internacional, com a derrota da revolução européia. Do mesmo modo, não se pode deduzir dos erros do bolchevismo uma linha de continuidade com o stalinismo. Na verdade, a predominância e a materialização da ideologia estatista não explica, mas antes é explicada pelo desenvolvimento prático da revolução russa, que, isolada, não pôde mais do que, expropriada a burguesia, estatizar (nacionalizar) os meios de produção, como método econômico que, eficaz na superação do atraso econômico naquele momento, não foi (nem o poderia ser) capaz de ultrapassar a lógica determinada pelo mercado mundial e, portanto, a manutenção no interior da própria Rússia da lógica do capital e da acumulação capitalista (mesmo sem capitalistas).

Neste sentido, a crítica que aqui é feita a Lênin se move pela preocupação prática frente ao presente. A recusa à licenciosidade terminológica de Marx e Engels, bem como a crítica teórica de Lênin, são absolutamente fundamentais para a explicitação clara, para as grandes massas, de que o nosso projeto de superação do capitalismo de modo algum significa a "estatização" ou a manutenção de alguma forma de Estado. Após as experiências terroristas do Estado no século 20 e, particularmente, a falência dos regimes pseudo-socialistas da URSS e do Leste europeu, esta demarcação teórica é uma necessidade prática. Se se trata, como de fato é, de superar a alienação do mercado (isto é, uma forma histórica de produção social sobre os quais os homens não têm controle e cuja universalização se baseia na exploração capitalista), esta superação não pode ser feita por meios alienados como é o Estado: isso, as massas sentem; temos que dizê-lo claramente.

   

O conceito trotskista de "Estado operário"

Trotsky foi, sem dúvida, o primeiro marxista importante a chamar a atenção para uma contradição fundamental na ideologia stalinista da construção do socialismo em um só país. Temos aqui em vista a resolução do VII Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1935, que certifica "a vitória do socialismo, definitiva e irrevogável, e o fortalecimento em todos os níveis do Estado da ditadura do proletariado". Trotsky não percebe a contradição entre falar em "Estado da  ditadura do proletariado": ele, na verdade, reivindica, contra Stálin, a concepção de Lênin e, portanto, assume inclusive os desvios estatistas presentes nela. No entanto, ele compreende o absurdo em se falar ao mesmo tempo em "vitória definitiva e irrevogável do socialismo" e em fortalecimento da ditadura do proletariado, exatamente porque compreendia - como Marx - que esta última corresponde ao período de transição ao socialismo. Em A revolução traída (1936), ele afirma: "se o socialismo venceu, definitiva e irrevogavelmente, não como princípio, mas como organização social viva, o novo 'fortalecimento' da ditadura [do proletariado] é um evidente absurdo".

Trotsky argumentava justamente contra a mistificação de que a URSS fosse ou pudesse ser, mantido o isolamento da revolução, uma sociedade socialista. Contra a caracterização da URSS como uma sociedade socialista, ele cunha o conceito de "Estado operário". Este deveria ser, antes de tudo, um conceito crítico, que admitia a existência do Estado, que não seria mais um Estado burguês, mas, por isso mesmo, não seria ainda socialismo. Contudo, frente a determinadas análises, como a do trotskista italiano Bruno Rizzi (que publicará em 1939 seu livro URSS: coletivismo burocrático), que afirma que a revolução russa havia conduzido a uma nova forma de exploração de classes (na qual a burocracia cumpriria uma função semelhante à da burguesia no capitalismo ocidental), o conceito de Estado operário termina assumindo uma posição positiva. Isto porque ele se fundamenta na análise de Trotsky de que a expropriação da burguesia e a estatização dos meios de produção teriam suprimido a exploração de classe e esta seria uma conquista fundamental da revolução russa que, apesar de sua degeneração política, não havia sido suprimida.

O argumento central para afirmar o caráter proletário do Estado "soviético" era, portanto, a estatização dos meios de produção e a utilização da planificação da economia. Trotsky com certeza não desconhecia o fato de que em outros países indubitavelmente capitalistas, como Itália e Alemanha, conhecia-se a estatização dos meios de produção, mas em nenhum deles todos os meios de produção estavam nas mãos do Estado. Essa diferença quantitativa era o que, para Trotsky, determinava a diferença qualitativa, social, do Estado: "A primeira concentração dos meios de produção nas mãos do Estado que a história conhece foi cumprida pelo proletariado através da revolução social e não pelos capitalistas através dos trustes estatizados. Esta breve análise é suficiente para mostrar o absurdo das tentativas feitas para identificar o estatismo capitalista e o sistema soviético. O primeiro é reacionário, o segundo realiza um grande progresso" (obra citada).

Ora, na verdade, Trotsky confunde o tempo todo em seu livro a estatização (nacionalização) dos meios de produção com a sua socialização. Em sua concepção, o fato de que os meios de produção não estivessem à disposição do mercado (isto é, não fossem propriedade privada e, portanto, não houvesse burguesia na URSS) isso significava que não havia a exploração do trabalho vivo. Ele não considerava a permanência da força de trabalho como uma mercadoria e, em conseqüência, a do salário, a da mercadoria como forma dominante dos produtos do trabalho, do lucro, etc. Em outras palavras, ele não tinha como ponto de partida as formas sociais da produção,  mas apenas as "relações de propriedade", isto é, a forma jurídica da propriedade dos meios de produção. O erro metodológico da análise é primário e visível.

Se se tem clara a fragilidade da análise de Trotsky acerca da forma social da produção na URSS, cai por terra o seu conceito de "Estado operário". Afinal, como ele insistiu muitas vezes, o caráter operário do Estado "soviético" devia-se não a quaisquer aspectos políticos: já não havia na URSS qualquer democracia soviética, pois os soviets foram destruídos, não havia liberdade de discussão no interior do partido bolchevique (submetido então a uma burocracia materialmente privilegiada), nem liberdade de organização de outros partidos operários e socialistas. O conceito de Estado operário devia-se, exclusivamente, ao fato de que a URSS era um Estado cujas bases eram a estatização dos meios de produção e a planificação da produção. Ora, na medida em que, finalmente, compreende-se que, sob a estatização, as formas básicas das relações burguesas de produção foram mantidas, não há mais qualquer argumento em favor de uma diferenciação de classe da URSS frente aos outros Estados claramente capitalistas.

Naturalmente, havia também uma contradição interna ao próprio conceito de "Estado operário", cuja base é o mesmo erro que Lênin cometeu no seu "semi-Estado": o erro de considerar o poder operário como uma forma de Estado. A raiz desse erro de Lênin é, na verdade, não ter feito em seu livro O Estado e a revolução uma crítica do Estado burguês a partir da crítica da economia política. Isto é, Lênin não explicitou a gênese das formas jurídicas e políticas do Estado burguês a partir das categorias críticas da economia política, tais como essas aparecem em O capital. Trotsky, seguindo a tradição leninista, quando fez a crítica da realidade pós-revolucionária da URSS, não compreendeu que a própria manutenção ali do Estado devia-se, em última instância, à manutenção das formas básicas da economia burguesa. Nessas condições, o Estado que concentra os meios de produção permanece necessariamente ainda um Estado na medida em que não se dão relações diretas entre os indivíduos, isto é, na medida em que tais relações continuam ainda sob as formas básicas da mercadoria, do dinheiro, do capital (embora estatizado) etc.; permanece, portanto, um Estado das relações sociais burguesas, um Estado burguês.

O capitalismo contemporâneo e a crise do "sistema de Estados"  

A atualidade da crítica do Estado não reside numa substituição da ideologia estatista por uma espécie qualquer de ideologia anti-estatista (como a dos anarquistas). Antes, ela decorre da compreensão das experiências estatizadoras do século 20 e, principalmente, da atual dinâmica do capitalismo contemporâneo. Trata-se, então, de uma crítica teórica do Estado, enquanto programa da sua dissolução prática.

Como os documentos programáticos do contraacorrente têm insistido, a estrutura fundamental do capitalismo contemporâneo são os monopólios mundiais. Estes, ao concentrarem a parte fundamental das forças produtivas (meios de produção e força de trabalho) e, portanto, da produção de mercadorias, imprimem uma dinâmica à economia mundial que ultrapassa, como nunca antes, num estágio qualitativamente novo, as economias nacionais e os Estados nacionais.

Na verdade, a completa autonomização da economia mundial, expressão extrema da própria autonomia do mercado frente aos homens e seus projetos (como a política), destruiu toda possibilidade de "regulação" da economia por parte dos Estados nacionais. Nesse quadro, o que se tem é uma crise da política enquanto tal.  Mas não se trata aqui apenas da crise do Estado nacional: antes, é uma crise do que Marx chamava de "sistema de Estados". Daí que a criação de um "Estado mundial" não seja uma saída verdadeiramente superadora da atual crise da esfera política, na medida em que ele suporia a permanência daquelas relações sociais que são base do Estado moderno. Ora, a crise do "sistema de Estados" e da política são parte da crise total do sistema: uma crise do conjunto de suas formas sociais de produção. Se compreendermos esta relação essencial entre a moderna economia burguesa e a forma moderna de Estado, concluiremos que, em outras palavras, esta é uma crise do sistema único de alienações do capitalismo: do mercado, cuja atual configuração fundamental é a dos monopólios mundiais, e do Estado, enquanto forma própria da produção mercantil.

Neste quadro, a crítica teórica do Estado compõe um programa prático de expropriação dos monopólios mundiais, com a finalidade de apropriação social de suas forças produtivas: a superação conjunta do mercado e do Estado.

 

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