Por que não somos marxistas anti-Estado, anarquistas, autonomistas, situacionistas, conselhistas... mas, simplesmente, inimig@s da economia política.

Ilana

A resistência cotidiana como ponto de partida. A experiência como mestre. A recusa como escola. Eis o programa d@s inimig@s da economia política.

É moeda corrente que, como um coletivo militante que somos, devemos ter uma filiação a uma qualquer "escola" de pensamento e crítica, que havemos de nos filiar a uma determinada "tradição" teórica. Contra-a-corrente que somos, como a todo o dinheiro, também a tal moeda corrente haveremos de negar.

Já fomos, alternativamente, caracterizad@s como "marxistas antiestado", como "autonomistas", como "conselhistas", como "anarquistas", como "situacionistas". Devidamente etiquetados, quase prontos para a venda...!! Pensamos que qualquer compreensão acerca do que somos é impossível sem a compreensão do diálogo real, da troca de experiências e reflexões que temos mantido com inúmeros outros coletivos e indivíduos em rebeldia pelo mundo afora. Nós compreendemos muito radicalmente que somos parte de um esforço maior que o nosso próprio esforço específico enquanto coletivo e só nessa medida podemos compreender aquilo que especificamente somos.

Postos à venda como perigos@s temos sido tod@s @s proletarizad@s que, ao redor do mundo, temos nos levantado, de múltiplas maneiras, no combate cotidiano ao sistema das alienações. @s que temos tecido, cotidianamente, a recusa radical ao mundo burguês e que assim, a partir da recusa cotidiana, temos nos encontrado nos dias de ação global. Tal "venda" como perigos@s, criminos@s tem sido, naturalmente, feita pelo poder. Ao lado desta, aquela feita pelos inimigos da negação prática do capital e da hierarquia, a esquerda oficial ou os grupelhos dogmáticos, "istas" diversos que nos "acusam" a tod@s do crime injustificável de romper com o dogmatismo (qualquer que seja ele), de abandonar sua(s) cartilha(s) e "kits revolução".

Mas não! Nós, como aquel@s com @s quais temos dialogado praticamente na recusa comum ao mundo burguês do mercado e do Estado, não estamos disponíveis às classificações e às logomarcas do mercado do pensamento e da contestação estéril, consentida e esperada pelo poder, feita pelos dogmáticos de todas as cores.

Como a fúria classificadora que quer nos rotular é – como toda fúria classificadora – sempre universalista, há de amputar como possa a experiência – múltipla, rica e que excede sempre a pretensão totalitário-totalizante de um pensamento que se crê senhor do mundo – para fazê-la caber nos estreitos moldes de um conceito. Mas é precisamente aí, na riqueza e na multiplicidade da experiência, que escapamos de tal fúria. Ela descompreende aquilo que – nós, @s proletarizad@s em luta – significamos. Afinal, não nos prestamos ao delírio taxonômico das velhas esquerdas, dos bolchevismos e demais "ismos" sempre prontos a pedir o pedigree – ou a delirá-lo, na ausência da resposta que pretendiam ouvir. Absolutamente incompreensíveis aos olhos e ouvidos tornados cegos e surdos pelo catálogo prévio dos bons, dos maus ou dos malditos que acompanha a hierarquização própria de qualquer sistema de pensamento. Foi exatamente nesta descompreensão que os movimentos de contestação desde Seattle – quando pela primeira vez, desde a derrota da insurgência da autonomia proletária dos setenta, @s proletarizad@s temos aparecido de múltiplos e diversos modos – fomos enquadrados ora com um ora com outro rótulo.

Particularmente quanto a nós, do CaC, somos chamad@s de anarquistas ou autonomistas pelos bolcheviques e neo-bolcheviques (stalinistas,trotskistas, maoístas, guevaristas, castristas e outros da laia). De marxistas anti-Estado, conselhistas ou situacionistas – "marxistas", portanto, segundo a sua leitura – por alguns anarquistas dogmáticos. Mas o que escapa sempre, em qualquer destas afirmações sobre o que pensam sermos, é aquilo mesmo que temos insistido em dizer: não cabemos em qualquer sistema de idéias. Não temos e não queremos pedigree. Somos vadios como vira-latas, somos das ruas, sem "raça". Somos "desclassificad@s". E queremos sê-lo, porque justamente é para abolir as classes que estamos em guerra. Somos, junto com milhares de proletarizad@s-"desclassificad@s" ao redor do mundo, uma gente cujos miolos "estão apodrecendo de tanto remar contra a corrente, dormindo de dia e vagabundeando de noite, como gente de má vida", como diz a ordem e a normalidade – num conto de García Márquez – de um garoto que, como nós tod@s, delira uma "visagem" na qual ninguém acredita, ainda que ele a veja com a nitidez absurda que as visagens reais costumam ter. Por força da sua ação, o menino a plasmou real. E os seus miolos, assim apodrecidos, ao fim mostram-se a possibilidade da sanidade outra, aquela instituída na ação da recusa ao "óbvio", ao "normal", ao "crível" dos "bons e sadios miolos" da razão bem-pensante. Diferentes do menino do conto, não estamos sós e somos cada vez mais. É isso o que acelera, no diálogo prático que essa ação comum possibilita, a perda completa dos miolos, na medida em que tal diálogo constitui, pela e na diversidade que ele realiza, um campo real de produção do novo, de produção da autonomia d@s proletarizad@s em recusa ao mercado e ao Estado. Produzimos, no diálogo prático, o impensável pela razão bem-pensante, o indizível pelos conceitos das ideologias, das ciências, das filosofias... enfim, dos saberes separados.... Somos e seremos cada vez mais incompreensíveis. Cada vez mais inclassificáveis, apesar dos esforços, inevitavelmente incompetentes, dos especialistas vários; pois no mundo cada vez mais ingovernável da mercadoria, os especialistas da ordem cada vez podem/sabem menos.

Não estamos aqui falando, é óbvio, d@s inúmer@s compas ligad@s a algumas destas tradições – marxistas anti-estado, anarquistas, situacionistas, autonomistas, conselhistas – que fazem a imediata relação de muitas das coisas que temos afirmado com aquilo que é comum a elas, ou seja, o caráter anti-hierárquico e anti-autoritário da nossa luta, a insistência na autonomia e a recusa a todo o vanguardismo e toda a colaboração entre as classes – identificações estas que absolutamente não recusamos, pois é evidente a presença de inúmeros ecos das reflexões feitas por vári@s anticapitalistas destas tradições naquilo que dizemos.

Não pensamos – nem pretendemos – estar inventando a roda. De fato, muito do que dizemos tem relação não com uma destas, mas com todas estas tradições. Mas não com tais tradições enquanto "tradições de pensamento" – às quais devemos, portanto, respeito dogmático – e sim com as experiências de luta concreta das quais emergiram tais reflexões. É assim que, da ação concreta e cotidiana de contestação prática ao sistema, dialogamos com as gerações de contestação anteriores, com as suas experiências e reflexões, aprendendo com seus erros e acertos; mas, sobretudo, compreendendo que é a nossa própria ação presente de recusa ao mundo estatal e mercantil que pode nos colocar em face das questões e das respostas que são as nossas questões e nossas respostas – nossas, @s d@s proletarizad@s no capitalismo contemporâneo –, em face do e contra o nosso presente. O nosso pé firme está, assim, no presente que recusamos e isso constituiu, para nós, o fundamento mesmo do qual partimos. Trata-se de fazer a crítica de toda e qualquer ideologia, de todo pensamento que se creia "separado", tornado autônomo, em si mesmo, em relação à experiência. Da recusa a qualquer ponto de partida que não a experiência mesma da recusa, da negação que se pensa enquanto nega.

A recusa do presente como recusa das alienações

Partimos da recusa decidida do presente, da sua negação. O nosso ponto de partida, assim, é a rebeldia em ato d@s proletarizad@s que somos em luta pela reapropriação do nosso tempo de vida, pelo controle e gestão das nossas vidas, dos nossos corpos, do espaço, das riquezas e das capacidades humanas. Mas quais as implicações teóricas e práticas de tal afirmação? Afirmar o nosso ponto de partida na negação do presente significa, em primeiro lugar, a afirmação da ação negativa, da negação que quer abolir o presente como aquela que, abolindo nela e por ela mesma toda a separação na qual tal presente se funda, é já a negação de toda separação, e como tal, de todo pensamento separado.

A fonte desta separação, da autonomização que atividades como o pensamento expressam, quando acreditam ser a fonte das verdades (por exemplo, quando os candidatos a dirigentes da humanidade, sejam os dirigentes bolcheviques, sejam os eternos candidatos a Reis-Filósofos, crêem ter as respostas que os simples mortais não possuímos, coisa que só é possível, evidentemente, porque supõem uma separação entre @s que pensam e @s que fazem), é o fato mais brutal e elementar da nossa existência presente; esta mesma que recusamos: o fato de que ela se funda precisamente na separação.

Quando temos apontado na recusa das relações coisificadas do mundo mercantil a raiz de nossa recusa a este mundo em sua totalidade, apontamos aquilo em que para nós consiste a sua determinação fundamental: as relações mercantis consistem na afirmação permanentemente contraditória da auto-afirmação e auto-negação do homem, elas realizam uma esquizofrenia fundamental entre aquilo que fazemos – a construção mesma do mundo humano, das relações sociais, dos sentidos humanizados, dos afetos, dos pensamentos, a auto-constituição do homem como algo distinto da mera animalidade, a esfera da cultura (das culturas, aliás, vez que não há experiência de uma, mas das várias culturas) – e aquilo que é feito de nós pela nossa mesma ação. Ou seja, ele consiste, desde o seu fundamento, numa separação fundamental de nós conosco mesmos.

No modo como vivemos na sociedade produtora de mercadorias, há uma permanente contradição entre a nossa própria ação instauradora de uma realidade que é maior que a nossa imediata realidade animal, isolada, que é a constituição mesma da sociabilidade, pela qual nos fazemos, e o modo como esta sociabilidade se apresenta para nós, a partir das trocas privadas de mercadorias. Aparecemos a nós mesmos como separados uns dos outros, como isolados e reunidos apenas por obra e graça das trocas, como se antes de estarmos trocando já não estivéssemos em relação, produzindo-a e produzindo-nos e às coisas. Aparecemos a nós mesmos, pois, como dotados de uma suposta autonomia em relação aos demais. Esta autonomia ilusória, a dos produtores de mercadorias, tem sua origem precisamente na autonomização do mundo à nossa volta e das diversas dimensões da nossa própria existência frente a nós propri@s. As relações propriamente sociais – afetivas, simbólicas, com a natureza – aparecem como se se acrescentassem artificialmente umas às outras, ou seja, como se nada tivessem a ver umas com as outras. Aparecem assim, como diferentes esferas da nossa existência: sou uma quando amo, outra quando trabalho, uma terceira enquanto leio um livro, sou assim, tantas quantas sejam as minhas experiências. Em tal aparição de nós a nós mesmos, quando nossa experiência é a experiência da alienação, da coisificação – quando tornamo-nos outros, alheios, estranhos e separados de nós –, o que resta, sempre, é o fato de que, mesmo nas relações coisificadas e nas atividades separadas é sempre um eu, um indivíduo concretíssimo, que é todas estas coisas. Não existimos, desde o nosso cotidiano – que é como existimos realmente –, senão como estes indivíduos. Mas, ao mesmo tempo, é inegável que este indivíduo integral que somos é, na sua experiência mesma, a própria experiência da fragmentação; afinal, de fato, somos umas tantas coisas distintas, diferentes. O problema é que nas relações nas quais somos e existimos concretamente, as relações sob o domínio do mercado, não fazemos, simplesmente, coisas diferentes nas muitas atividades que fazemos e nas muitas relações que desenvolvemos. Não somos mais múltipl@s e diferentes, mas somos, ao mesmo tempo, muit@s e contraditóri@s e um só e iguais. Como assim?

Sob o domínio do mercado, somos absolutamente contraditóri@s conosco mesmos. No modo como percebemos que somos um@ aqui, outr@ ali, outr@ acolá, não se trata simplesmente de nos percebermos como diferentes em várias situações, mas, ao mesmo tempo, de nos percebermos "eu aqui" contra "eu ali", contra o eu acolá, e isso porque de fato existimos de modo inteiramente contraditório. Por exemplo, ninguém que é obrigado a ir trabalhar, a ouvir ordens do chefe, pode deixar de sentir que o modo como se vai ao trabalho não só é diferente mas é exatamente o contrário do modo como, por exemplo, vamos namorar ou passear. A um vamos obrigad@s, a outro, vamos porque queremos. Mas mesmo onde vamos obrigad@s (ao trabalho, por exemplo), sempre arranjamos um modo de escapar do controle e de enrolar o chefe, burlando a sua autoridade; isso, quando não a confrontamos diretamente. Isso porque de fato resistimos, no nosso cotidiano, a ser submetid@s exatamente enquanto estamos sendo.

Tal aparecer separado das diversas esferas da nossa vida, não é um mero aparecer, mas está fundado, como disse, no fato realíssimo de estarmos, sob o domínio do mercado, nos relacionando uns com os outros como se fôssemos meros portadores individuais de mercadorias. A ilusão de sermos "produtores individuais", e não desde sempre indivíduos já constituídos nas e pelas relações sociais, na verdade não é uma simples ilusão; antes, ela é o modo mesmo como nos relacionamos, de fato, uns com outros, na medida em somos tornad@sna sociedade da venda universal mer@s produtores que trocam.

O que caracteriza propriamente a nossa existência sob o capitalismo é justo sermos submetidos, na integralidade das nossas existências, à mera condição de portadores de mercadorias. Só enquanto somos produtor@s de mercadorias podemos pretender existir no mundo do mercado e por isso ele é o mundo da economia, do domínio econômico. Ora, mas em nós treme e reverbera a totalidade que somos, pois não só existimos para produzir mercadorias, mas antes, para amar, poetizar e tantas outras coisas que não vender e comprar. A produção das coisas, que deveria servir apenas para continuarmos vivendo, para enfim podermos viver, ao transformar-se em produção de mercadorias, transformou-se naquilo mesmo que nos impede, realmente, de viver. Vivemos para comprar e vender (vendemos, afinal, nosso tempo, no trabalho ou mesmo quando consumimos-compramos). Ora, o fato de que em nós reverbere a recusa em ser reduzid@s a produtor@s de mercadorias só demonstra que, de fato, não é só isso o que somos. Entretanto, o que é próprio do mundo mercantil é submeter aquilo que somos, na amplitude sempre aberta das possibilidades humanas, à unilateralidade do mercado, da economia. De nada vale reverberar contra ele se não negamos aquilo mesmo que é a negação da emergência das nossas possibilidades negadas.Ou seja, se não reconhecermos praticamente que as ilusões de autonomia não são meras ilusões mas a própria experiência da autonomização das relações mercantis, na medida em que tais relações substituem as relações diretas entre os homens pelas relações mediadas pelas mercadorias. É a esta ilusão da própria experiência, ou seja, a nossa existência ilusória real e a sua representação no plano do pensamento, que chamamos ideologia, o pensamento separado da existência separada.

No capitalismo, o mercado, que aparece como natural, só aparece assim aos nossos olhos e à nossa consciência, à nossa experiência, enfim, porque e na medida em que aí realmente se dá uma substituição das relações diretas entre os homens pelas relações entre as coisas; e esta substituição parece natural. Assim, o tempo inteiro estamos em relação com mulheres e homens do outro lado do mundo, que nunca vimos nem vamos ver, mas só por meio das coisas. As coisas que eu compro num supermercado e que foram feitas pelos chineses forçad@s a trabalhar lá, como nós somos forçad@s aqui. Estamos tod@s em relação, não só quando nos vemos e sabemos que estamos, mas sobretudo quando não nos vemos e pensamos estar diante de simples coisas.

Se as relações no nosso presente são relações coisificadas, fundadas na autonomização das coisas em relação aos indivíduos, o nosso ponto de partida, só pode ser, assim, necessariamente, a negação de toda autonomização, de toda a separação. E, portanto, só pode ser também a negação do pensamento que se crê autônomo em relação à ação, a negação do pensamento autonomizado, separado. A sua condição única, para ser pensamento da negação do mundo é, assim, ser pensamento surgido na e pela ação negativa ao mundo das separações. Isso significa, portanto, que, nós do contra-a-corrente, não concebemos o nosso esforço de reflexão senão como parte indissociável do esforço prático-reflexivo de centenas de milhares de proletarizad@s na recusa ao mundo burguês, esforço prático que é também o nosso.

O nosso ponto de partida é, assim, a recusa prática das separações, recusa que se dá na nossa recusa cotidiana em nos submetermos ainda quando nos submetemos. Enquanto sabotamos, enquanto nos negamos a ser meras coisas e a ocupar o mero lugar de "peça" de uma engrenagem, rompemos precisamente, na nossa existência mesma, estas separações; isso porque assim resistimos a ser meras coisas num mundo coisificado, mesmo quando concretamente somos também ainda coisas, peças desta engrenagem, quando somos recusa e negação ainda só parcial à máquina do trabalho coisificado e não total, pois que estamos nela. A sabotagem do mundo das separações é, como recusa prática a produzir para os outros, o esforço de nos reapropriarmos de nós mesm@s, das nossas vidas. Sabotamos sempre, porque na nossa vida cotidiana temos a experiência permanente da contradição que é sermos indivíduos expropriados de nossa individualidade. A experiência de sermos indivíduos é exatamente aquela que nos põe diante da verdadeira autonomia, o exato oposto da falsa autonomia das coisas e relações autonomizadas. Somos autônomos quando rompemos as separações entre pensar e fazer, pensar e sentir, fazer e sentir e todas as separações do mundo separado de nós. Na desobediência cotidiana, experimentamos de diferentes modos – seja enrolando no trabalho seja na assembléia operária, em toda luta contra o que está dado – a negação da máquina. Aí já não somos máquina, não somos peça, mas indivíduos; e, como indivíduos, como omnilateralidade em oposição às unilateralidades, somos a própria experiência da recusa das separações, pois, como indivíduos, trabalhamos, pensamos, amamos, fazemos todas estas coisas e não uma delas de cada vez e contra as demais.

Como recusa das separações, nosso pensamento só pode ser recusa do pensamento autonomizado. É a esta recusa do pensamento autonomizado que chamamos de teoria. Ela é o oposto de todos os saberes especializados, separados uns dos outros e do fazer; é recusa das ciências, da filosofia, das ideologias. Isso quer dizer que, do ponto de vista teórico, partimos de uma crítica das relações sociais sob o domínio da economia políticado capital – que reconhece seu centro, como elemento fundamental, nesta recusa à separação.

Nós e o "problema" Marx

O núcleo daquilo que nosso coletivo tem dito, quando afirmamos que o nosso ponto de partida teórico é a crítica da economia política – crítica pensada como recusa de totalidade das relações capitalistas e não como crítica especializada da economia política entendida nos estreitos limites de uma ciência –, nos remete a Marx.

Efetivamente, encontramos em sua reflexão a primeira crítica teórica daquilo que constitui o mundo burguês em sua especificidade: as relações coisificadas e o trabalho assalariado, seu fundamento. Tal crítica, em Marx, não é, contudo, crítica especializada. Ela não é crítica da economia política compreendida como crítica econômica da economia. Não é um momento dentre outros, como a crítica (se assim separada, necessariamente ideológica) da ideologia, a crítica política da política, filosófica da filosofia, científica das ciências etc; mas é, pensamos nós, a crítica do mundo da economia política como totalidade, crítica da totalidade da vida. É, assim, ela mesma parte do esforço teórico-prático de Marx de recusa do mundo mercantil. Só como recusa de totalidade do mundo burguês ela é ao mesmo tempo recusa da sua representação autonomizada no pensamento, dos conceitos da economia. Ela rompe, assim, a um só tempo, com as separações próprias do mundo autonomizado da economia política – o capitalismo – e do pensamento autonomizado. É enquanto tal que a absoluta novidade de um esforço teórico como o de Marx, que põe precisamente a superação das separações – inclusive as dos saberes especializados – que compõem o próprio segredo do mundo cindido e quebrado, o mundo do capital, pode ganhar a sua radicalidade. Longe, assim, do alcance dos rótulos e das logomarcas do mercado do pensamento.

A crítica da economia política entendida como expressão teórica da recusa radical à totalidade da vida sob o domínio do capital, longe de se situar no terreno do pensamento autonomizado – da "lógica" e da "dialética" do pensamento separado dos filósofos e ideólogos – só se põe como recusa teórica na medida mesma da negação em ato que a constitui, da negação prática da qual ela faz parte. Antes de críticos da economia política como expressão teórica da recusa ao capital e ao pensamento que o naturaliza, somos inimig@s da economia política, do trabalho assalariado, da mercadoria, enfim, do mundo burguês em sua totalidade. Enquanto inimig@s da economia política é que podemos ser também @s que elaboramos a sua crítica teórica, nós mesm@s, tod@s, longe de todo especialismo, de toda a separação, de toda a hierarquia.

Evidentemente a leitura de Marx que nós do contra-a-corrente fazemos está longe de ser a única.Tampouco a mais usual. Nesse caso, como em outros, cada um tem aquilo que merece, ou que pode...

Como não nos relacionamos – também com Marx – na forma autonomizada de uma relação com uma "tradição de pensamento", exatamente aí pensamos poder escapar das armadilhas de toda apropriação ideológica de uma teoria. Antes de nos relacionarmos com o "pensamento enquanto tal" (e, portanto, com o seu "autor", como se ele fosse mesmo autor-criador como um Deus, base de todo o dogma), buscamos reenviar o pensamento ao único lugar que pode explicar os seus movimentos internos. Com efeito, é inexplicável aquilo que Marx diz, por exemplo, sobre a ditadura do proletariado, senão a partir do próprio movimento concreto da negação cujo movimento ele pretende expor em seus escritos enquanto é ele mesmo parte desta negação. Só quando a negação em ato do Estado pel@s proletarizad@s toma forma própria na Comuna de Paris, um pensamento que nada guarda em comum com o esforço dos ideólogos de apresentarem um programa de intenções e uma construção a priori daquilo que será a experiência futura, se põe a dizer aquilo que está sendo feito. A insurreição e a destruição do Estado e de toda a heteronomia do capital, destruição de toda a hierarquia pela assembléia d@s insurret@s, a constituição da autonomia d@s proletarizad@s, não é um projeto do pensamento, não é um programa, entendido como uma carta de intenções, mas é, antes, a sua constituição no próprio ato de inaugurar-se pela negação do mundo presente. A forma utilizada por Marx 20 anos antes da Comuna para referir-se "à revolução social do século dezenove" é emblemática: "...ela não pode tirar sua poesia do passado e sim do futuro...as revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem com seu próprio conteúdo...a fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século xix deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes, a frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase."(O 18 Brumário...)

O que lemos aí é precisamente uma afirmação radical do primado da experiência da negação sobre todo pensamento autonomizado. Se a frase é o dizer do pensado, trata-se, aí, de apontar a impossibilidade de um dizer separado, por fora do fazer-se mesmo da experiência da negação a não ser como ideologia. É só quando dita em ato – na Comuna – que a revolução social pode dizer-se também no enunciado que a forma própria do poder d@s proletarizad@s insurretos é o auto-governo e a destruição do Estado. Ora, é como experiência mesma da negação que ela é já o dizer ela mesma: é autonomia, recusa da hierarquia, recusa da representação. Só @s proletariozad@s em ato, em corpo, podem ser a insurreição. Não o partido, não o Estado, não as ideologias da liberdade.

Qualquer leitura de Marx que pretenda encontrar ali um sistema, tal como o entende a Filosofia, que pretenda encontrar ali uma Bíblia, tal como os religiosos vários dos marxismos, fatalmente há de amputar o núcleo mesmo do seu esforço teórico: o de ser, indissociavelmente, pensamento de uma ação negadora que recusa as separações e que pensa enquanto age; e que nega, assim, toda síntese do pensamento que enclausura, na identidade da sua dinâmica autonomizada, a experiência da negação.

Toda apropriação ideológica do esforço teórico de Marx – seja a do marxismo kautski-lenino-stalino-trotski-mao-castro-guevarista, seja a do "marxismo ocidental" – fatalmente caiu sempre naquela que é a armadilha dos saberes separados. Ao pretender transformar a dialética, à semelhança do que ocorre em Hegel, num método do conhecimento situado já na tradição filosófica do pensamento autonomizado, ou seja, num método que se relaciona com o pensamento em si mesmo, ela obscurece o elemento absolutamente novo daquilo que significa o uso da dialética em Marx: se o negativo no conceito – aquele capaz de apreender a negação em ato – é o ponto de partida da exposição teórica, isto se dá em Marx precisamente porque e na medida em que, antes do método (caminho) do pensamento e como sua condição, tal caminho (método) houvera já sido trilhado na negação prática do mundo mercantil pela crítica proletária.

Naturalmente, a tradição do marxismo, para transformar a crítica teórico-prática em sistema, teve forçosamente que amputar a negação prática da totalidade e o negativo que a expressa conceitualmente, como pontos de partida, para tornar, assim, a dialética em Marx uma dialética do sistema e da síntese, à semelhança de Hegel. Para transformar o pensamento centrado na recusa do presente – a reivindicação absolutamente nova do materialismo histórico – em parte de um esforço "filosófico" em tudo estranho a Marx, o marxismo ligou-o à pretensão de um materialismo filosófico que, como todo materialismo filosófico, é tão comprometido com um pensamento em si mesmo, autonomizado, quanto o seu oposto simétrico, o idealismo filosófico. Deste modo, um pensamento que é o exato oposto de uma autojustificação – na medida em que concebe a sua insuficiência radical como pensamento separado – foi tornado infértil para melhor servir aos delírios alucinados do pensamento que quer sentir-se na serena condição de salvador, ou professor, do mundo.

Obviamente, afirmar que todas as apropriações feitas pelo marxismo são igualmente amputadoras do núcleo central da negação que o funda e do negativo que o expressa não significa que todas elas sejam iguais. Há momentos luminosos nesta tradição, mesmo com os seus equívocos, como em História e Consciência de Classe ou como em Korsch, Adorno, Heller, Thompson, entre outros. Todos estes, entretanto, de uma ou outra forma recaíram sempre na parcialidade, na unilateralidade – na separação e autonomização – que põe abaixo todo o esforço de crítica de Marx precisamente como expressão teórica da negação de totalidade à totalidade do capital, como ruptura com a totalidade. A apropriação de um ou outro momento das suas reflexões é feita por nós e continuará sendo feita, assim como a apropriação do pensado em outras tradições, também elas parte ou não desta negação de totalidade, muito concretamente a partir daquilo mesmo que afirmei na introdução deste artigo: a crítica do presente, a recusa e a negação do presente como o "nó" que amarra aquilo que para o "bom pensamento" acadêmico chega a horrorizar, pois que soa "eclético". Não temos dúvida alguma em adotar qualquer suposto "ecletismo" do pensamento em nome da unidade da negação teórico-prática do presente. Tal nó, ainda uma vez, não o inventamos, mas o conhecemos através do esforço concreto de aprendermos com as experiências de negação anteriores e suas expressões pensadas.

Na crítica de Marx à dialética hegeliana, encontramos o "nó" essencial da postura teórica da critica da economia política como crítica da totalidade histórico-social do mundo mercantil. A unidade entre ser e consciência – aquela mesma apontada por Lukács em História e Consciência de Classe, postulada por Marx no conceito de práxis – não é aqui postulada, como em Hegel, como algo determinado no e pelo pensamento, mas na constituição em ato de um sujeito que se reapropria da própria existência, rompendo pratica e teoricamente com as separações do mundo burguês. É postulada, pois, a partir da experiência mesma da unidade que somos.

Naturalmente, trata-se, aqui, de uma absoluta "impostura" que tal postura significa para o pensamento que se crê autônomo, capaz de abarcar a totalidade do que é, como em toda filosofia e ideologia: há um fora do pensamento, um fora do "si" que pensa que é precisamente aquilo que põe a possibilidade do pensamento ele mesmo. Este fora de si do pensamento é a experiência humana, como experiência social, situada historicamente, que excede o conceito. Nesta excedência – que é o excesso mesmo da materialidade intranscendível dos corpos com sentido, excesso do múltiplo –, o que excede o pensamento são precisamente os desejos, as necessidades humanas, insuportavelmente carnais. Ademais de acessíveis ao pensamento, e para aquém de sê-lo, são carnais. Carnais, sejam carnais todos os desejos, bradava já Cruz e Souza quando por aqui ainda se iniciava o domínio do mundo mercantil, a submissão dos desejos e necessidades em sua concretude à abstração do dinheiro, que é tão universal e abstrato quanto a razão bem pensante que não cessa de reafirmá-lo, na pretensão de uma universalidade que precisamente há de buscar integrar e submeter sempre a concretude que somos ao seu delírio universalista.

Na crítica teórica de Marx à economia política o que está em questão não é, em absoluto, a economia. Só o saber situado ele mesmo na racionalidade ocidental – doravante econômica, mesmo quando professada a mais antieconômica, se não rompe com a totalidade do mundo da economia – pode conceber a crítica de Marx como crítica especializada, vale dizer, científica ou filosófica, pois o que ela põe em movimento, do ponto de vista teórico, é precisamente a mais radical recusa da totalidade do mundo burguês. A acusação, tão freqüente quão pouco séria de um economicismo em Marx só é possível para aqueles já situados na lógica especializada própria do mundo da economia política, do mundo do capital. Nessa acusação, acusa-se a critica teórica do mundo da economia, exatamente aí onde tal crítica denuncia o domínio econômico, de ser ela mesma este mundo. E isso quando justamente tal crítica não cessa de afirmar que é pensamento da negação deste mundo. É como se, diante do Rei que desfila nu, dizer "o rei está nu" fosse estar nu com ele. Naquela fábula, aliás, não por acaso, a criança que o diz é imediatamente calada.

Adeus ao marxismo, bem-vindo às lutas d@s proletarizad@s

Não cessava Marx de dizer que a condição única da teoria expressa n’O Capital e em suas demais obras era a emergência em ato das lutas proletárias, a negação em ato da ordem levada a efeito pel@s proletarizad@s em luta da qual ele próprio era parte. O rei está nu, dizem @s proletarizad@s em luta. O rei está nu, é o que diz e deve dizer uma expressão teórica dessas lutas. É a rebeldia dos corpos em luta, do tempo reapropriado na e pela insurgência dos desejos negados, o oposto e a negação da economia que é, desse modo, o ponto de partida da reflexão.

Se a insurgência d@s proletarizad@s é recusa radical ao mundo burguês ela é, antes de mais, recusa da economia. Ora, dizer que um pensamento que expressa tal recusa é economicista só é possível na medida em que se faça uma leitura – e isso precisamente é o que faz o marxismo – que já autonomiza e separa, no pensamento mesmo, aquilo que, na recusa prático-teórica, no ato mesmo da negação, é inseparável. Só neste brutal equívoco, ele próprio inteiramente situado na lógica do capital, se situa a tradição glorificadora da condição de "proletário" levada a efeito pelo marxismo. Todo o esforço teórico de Marx em mostrar – na exposição do processo de acumulação primitiva do capital – o que tal processo significou como inclusão forçada no mercado através do assalariamento, fica nessa leitura desprovido de sentido ou, com mais freqüência, exige que ele seja inserido numa "Filosofia da história" inteiramente estranha ao esforço de Marx de partir da concretude histórico-social. Este esforço, muito claramente presente nos marxismos diversos, consiste em pretender justificar a condição imposta do assalariamento como uma necessidade.

Ora, mesmo num texto breve como é o Manifesto, Marx deixa clara a negação a toda a Filosofia da história quando afirma a condição do assalariamento como escravidão assalariada, demarcando assim que, do ponto de vista das relações entre os homens, a escravização às coisas – nas relações mercantis – é tão não-livre quanto a escravidão direta aos homens. A escravidão às coisas é, assim, ainda e sempre a escravidão aos homens, como nos mostra a crítica da coisificação das relações humanas n’O Capital, vez que as coisas às quais estamos escravizad@s não são "as coisas", mas as relações sociais coisificadas que elas realizam e ocultam ao mesmo tempo. Se, do ponto de vista da liberdade frente às relações sociais, trata-se, no capitalismo como em qualquer escravismo, da mesma não-liberdade – e essa é a razão de vivermos ainda na pré-história da humanidade –, se não há, pois, qualquer progresso na história humana quanto à liberdade, não podemos estar frente a qualquer Filosofia da história, uma vez que só na perspectiva de um "progresso da história", seja como progresso do bem ou progresso do mal, mas sempre um caminho inevitável, necessário, rumo à glória ou à ruína, é pensável qualquer Filosofia da história. Se Marx fala de uma liberdade do homem frente à natureza que é passível de medida na história, longe está de, como pretendem as inúmeras leituras de progressismo em Marx, pretender utilizar tal medida na determinação da liberdade. E isso por uma razão muito simples: é que a liberdade não é aqui, como é para os filósofos (e mesmo para as ideologias revolucionárias da liberdade), uma idéia reguladora, um conceito, um dever-ser ou um ser, mas só é compreendida, na radicalidade, desde um ponto de partida outro que o da razão ocidental: a crueza e concretude da negação em ato d@s proletarizad@s em luta.

Com efeito, é a própria recusa em ato ao assalariamento o ponto de partida para aquilo que, do ponto de vista puramente conceitual, é expresso por Marx na dialética entendida como negatividade. É a recusa ao assalariamento – das sabotagens ludditas à Comuna de Paris e por aí afora – que, na efetividade mesma da sua existência, põe a nu a existência contraditória na qual se funda a sociedade burguesa e a liberdade que se institui na e pela negação prática da não-liberdade. É a recusa em ato do tempo presente, no qual a história já se tornou – como inclusão forçada no mercado – a história universal que antes não fora (ou só fora nas cabeças dos Filósofos, tão a gosto de todo o seu universalismo), é a recusa da submissão do concreto ao abstrato que constitui o valor de troca, o valor mercantil, que é, ela mesma, a posição da liberdade: a recusa do trabalho concreto em submeter-se, a afirmação da autonomia d@s proletarizad@s em insurreição contra a proletarização forçada. É a recusa do trabalho concreto em tornar-se abstrato, negação do assalariamento que põe, assim, a possibilidade da apreensão da contraditoriedade lógica do valor de uso e do valor de troca.

A liberdade, assim, tal como pensada em Marx, não é mais que a afirmação mesma do ato de libertação do domínio do trabalho assalariado, afirmação, portanto, da negação prática, da recusa ao dado e é só assim, como recusa a todo o dado, que tal pensamento é crítica. Crítica que se volta negativamente sobre a sua própria existência porque antes fora recusa, negação desta mesma existência.Tal negação, que cotidianamente se manifesta nas insubmissões as mais várias ao assalariamento e à hierarquia na qual este implica só se realiza como negação de totalidade na insurreição. Não cessa jamais, porém, de ser resistência cotidiana, recusa da vida à não-vida da submissão ao mercado.

É da resistência cotidiana, a existência efetivamente contraditória – da recusa permanente dos concretos que somos em nos submeter ao abstrato do trabalho assalariado, ao dinheiro, à economia, enfim – que emerge, na sua forma conceitual, a contraditoriedade entre valor de uso e valor de troca. É da experiência contraditória que vivemos sob o domínio da economia – da submissão das nossas existências nas suas múltiplas dimensões à dimensão universalizante e negadora do múltiplo que somos, submissão à economia – que pode ser pensado o fundamento das contradições entre o valor de uso e valor de troca, trabalho concreto e abstrato etc.

Experiência aqui é algo muito outro que a experiência tal como é pensada pelos cientistas da modernidade ou filósofos: a experiência tal como aparece aos especialistas é já pensada segundo a universalidade do saber – não há ciência do particular, nos ensinava já Aristóteles, referindo-se, precisamente, ao saber separado que sempre apareceu aos olhos dos filósofos como o saber enquanto tal. A experiência da negação, da recusa é algo outro que a experiência controlada pela razão, algo outro que a experiência necessariamente mutiladora de todo empirismo e todo racionalismo. A experiência da recusa é, necessariamente, a recusa de toda a separação, pois não somos alma e corpo, ou sentido e finitude, mas somos, concretamente, corpos com sentido, corpos humanos, intranscendivelmente corpos, intranscendivelmente sentido pois que instauramos sentido ali mesmo onde este é negado. Estes corpos sociais e propriamente humanos que somos, nos recusamos, a não ser às custas da nossa dilaceração, à experiência do aprisionamento. Recusamos o aprisionamento do tempo da vida ao tempo do trabalho ou do consumo – que não é a fruição, mas apenas a realização do mercado –; recusamos o aprisionamento dos desejos, dos afetos ao domínio da razão, recusamos enfim, a experiência controlada dos laboratórios, das pesquisas, a experiência que submete corpos – humanos, animais e, por fim, toda a natureza – à mesma inquirição perversa que os reduz à ótica da lucratividade e do manejo. Recusamos a experiência da separação pela e na experiência das relações propriamente humanas, que se põem nas relações diretas, não mediadas pelas coisas, seja a das assembléias seja a das relações amorosas e afetivas em geral. Só aí se põe a individualidade daqueles que nos sabemos fazendo parte de um mundo social e humano. A experiência da negação é, assim, como negação da separação, experiência da integridade, experiência da omnilateralidade na negação das unilateralidades às quais a existência presente nos condena.

A grande confusão que os marxismos não cessaram de fazer foi justo a de pretender utilizar, para os fins próprios de um saber situado de antemão no universo das separações, um pensamento que é a sua radical negação. Se, a partir da negação do presente, é possível dialogar com um sem número de elementos das experiências históricas que o antecederam, isto não se dá por obra de um qualquer método universal do pensamento capaz de apreender a totalidade das experiências humanas, mas só se dá na medida da permanência no presente das sombras d@s vencid@s. Assim, por exemplo, fazemos a partir do presente a crítica dos séculos de dominação patriarcal e de dominação étnica na medida mesma da permanência, entre @s proletarizad@s que somos, da negação e da recusa que nos liga @s vencid@s do passado. É que aqui chegamos, ao lugar d@s proletarizad@s ao qual estamos reduzidos, supondo as hierarquias constituídas no passado, aquel@s que ainda permanecem fazendo de nós @s herdeir@s da recusa vencida; ou seja, a opressão patriarcal e étnica através da qual se constituiu, concreta e historicamente, o mercado mundial. Assim, é na relação com a tradição de luta das comunidades matristas contra o patriarcado, dos povos originários das Américas e d@s escravizad@s african@s, como parte de uma tradição comum de resistência que nos encontramos no presente, frente a uma abertura à tradição comum de resistência. Ora, mas a permanência que nos liga às tradições de luta d@s vencidos só é, aqui, alcançada a partir da recusa radical ao nosso presente e é nessa medida e não graças a um método autonomizado que somos capazes de alcançar, prática e teoricamente, as gerações de lutador@s vencid@s do passado. De outro modo, o passado é, para nós, radicalmente inapreensível. Aquilo que os marxistas fazem ao tentar apresentar o materialismo histórico como uma chave de conhecimento do passado, utilizando-se, para tal, das categorias próprias do tempo presente, é, naturalmente, coisa de especialistas impotentes para relacionar-se de modo vivo com a tradição enquanto tradição de negação.

Só por uma traição fundamental à experiência da recusa das separações, que a crítica teórico-prática da economia política em Marx sempre expressou, é que nos deparamos, ao longo dos séc xix e xx e continuamos ainda a nos deparar, com tantas unilateralizações do pensamento de Marx capazes de conduzir às aberrações mais várias no campo da ação como no campo do pensamento. Só na medida em que amputam o sentido de totalidade da crítica à totalidade do mundo da economia é que se pode pensar ora um Marx que resulta num Kautsky ou num Kurz, ora num Marx que resulta num Lênin, num Gramsci, num Stalin ou num Mao ou num Trotski. De fato, entre as apropriações aparentemente as mais díspares resta essencial o mesmo: a compreensão unilateralizada de um ou outro momento de uma recusa que ou é negação total da totalidade do capital, ruptura ou decididamente não é.

 

A ruptura da totalidade e a recusa das ideologias

É na apropriação sempre unilateral e, portanto, parcial, que se funda a absoluta impossibilidade de tais leituras de Marx em pensar a ruptura com a totalidade do capital a partir da experiência mesma de tal recusa na cotidianidade. Não é outra a fonte das separações, no interior da tradição marxista, entre vanguarda e massas, direção e dirigidos e, por fim, Estado (Partido, "semi-Estado") e órgãos de poder autônomos, ou entre o geral e o particular, o imediato e o histórico, tática e estratégia. Tais separações, fundadas todas elas numa existência incapaz de recusar praticamente a totalidade na qual se insere, só podiam ser o que historicamente foram: a permanência do mundo das separações, do mundo estatal, mercantil e ideológico. Não por acaso, todas as apropriações do esforço de Marx que reivindicavam o seu pensamento haviam de situar-se já no horizonte do pensamento separado do mundo do capital. A experiência cotidiana da negação das determinações do mundo das separações jamais foi o ponto de partida desta tradição, situando-se, toda ela, seja na separação que opõe as vanguardas políticas à massa ignara, seja na sua variante "cult", que opõe os intelectuais à massa igualmente ignara. Um pensamento que não parta ele mesmo da experiência da negação, da ruptura cotidiana – ainda que parcial, enquanto estamos submetidos ao mercado e ao Estado – com a totalidade do capital, ou seja, que reproduza as separações enquanto diz negá-las, há de ser um pensamento da ordem e sempre o foi. Aqui, é claro, trata-se não só da tradição marxista mas de todo e qualquer pensamento situado na separação. A pretensão destes pensamentos, de cada um deles, em (se) oferecer (como) a síntese da negação da totalidade é só a conseqüência lógica que se pode esperar daqueles que se situam no terreno mesmo da lógica autonomizada. Que a negação não resulta numa síntese e que não há um único pensamento capaz de expô-la, tampouco um lugar privilegiado, no interior da experiência da negação, para fazê-lo, é algo que escapa e escapará a qualquer ideólogo.

Mas é necessário, por certo, também aqui, estar atentos aos ideólogos. Nos tempos que correm, aparece como simpática a recusa da síntese e o apelo à diferença que não se concebe, entretanto, a partir da negação. Neste caso, como já o fora para um Bernstein, no século xix, apresenta-se a idéia de que o movimento é tudo, o objetivo final nada. Como se a experiência do movimento, deste movimento concreto e não do "movimento em geral" – pois este é já um delírio próprio do pensamento separado –, não fosse precisamente experiência da negação e, enquanto tal, experiência da luta na qual nos movemos; e não só nós, mas também o inimigo. Mas, mais que isso, como se o movimento não fosse a própria experiência já de negar a submissão real de nossas vidas ao inimigo, o capital, com seus portadores concretos (no capitalismo contemporâneo, os monopólios mundiais e os Estados e instituições a seu serviço). Tal perspectiva – que transforma o movimento num movimento indeterminado – obscurece precisamente a determinação contra a qual nos fazemos negação.

Quando recusamos toda a ideologia como expressão das separações próprias do mundo que queremos superar – e é assim, mesmo em relação a tradições de pensamento no interior das quais há uma busca de abertura à multiplicidade da experiência e à negação, como ocorre com os conselhistas, anarquistas, autonomistas etc. –, recusamos a própria idéia da reivindicação de pertencimento a uma tradição de pensamento que aparece necessariamente como formalização no pensamento da tradição de recusa e negação que tais tradições realmente são. Se não há, na radical novidade que toda experiência autêntica de negação necessariamente põe, nenhuma continuidade com o dado, mas antes, por ser negação, expressa exatamente a instauração de um inteiramente diferente, de um outro radical, tais tradições terão, assim, sempre muito mais a nos dizer tanto menos nos digam, ou seja, tanto mais a nossa negação seja capaz de tirar da sua própria radicalidade negadora do presente, tanto menos a frase de antes será capaz de dizer do conteúdo de agora. Assim, o nosso ponto de partida não é e não pode ser qualquer forma ou idéia, sempre abstrata, enquanto tal, mesmo aquelas gestadas nas formas positivas das negações anteriores e nas suas expressões teóricas – o poder dos conselhos, a idéia da autogestão, da não-hierarquia etc –, mas as formas históricas concretas que venhamos a gestar, aquelas capazes de efetivamente negar o que está dado. É, assim, a recusa concreta do nosso presente e a invenção concreta e negativa do novo aquilo que nos mobiliza. Trata-se de compreendermos radicalmente que é preciso, na gestação mesma de um conteúdo inteiramente outro que o do mundo das separações, de gestarmos, na multiplicidade das nossas negações concretas e cotidianas, a possibilidade daquela que é a nossa frase, uma frase que não é mais frase no sentido do saber separado, mas é enunciação que é também anunciação.

Que tal enunciação só seja possível como construção concreta e negativa frente ao presente e que ela seja impossível enquanto enunciação de um só, é algo já dito. E já dito somente enquanto, como parte da gestação desta enunciação coletiva, pretendemos – nós do contra-a-corrente – contribuir também para dizê-la. Mas o dizer desta enunciação não cabe, em absoluto, em alguns de nós, mas necessariamente há de ser dito por tod@s, junt@s na recusa, ou não estaremos ainda na recusa radical do mundo, pois ali onde nem tod@s dizemos e fazemos, estaremos ainda reproduzindo o mesmo da separação, das hierarquias, do poder heterônomo.

Não há um único modo de dizer-fazer a crítica teórica-prática da economia política. Tampouco há um modo privilegiado. Quando temos insistido no diálogo prático entre as diversas negações como o caminho para a negação de totalidade, tal caminho é, ainda uma vez, também método. Não há como dizer a totalidade das múltiplas recusas a não ser na constituição real de um espaço comum de lutar e de dizer. Não há um discurso capaz de dizer o todo da negação que somos, porque o todo é precisamente aquilo de que somos a negação. O que queremos constituir é necessariamente o diverso e só na diversidade do diálogo feito na e pela negação do mundodiálogo d@s proletarizad@s, muit@s feit@s um só pelo mercado mundial – em luta na guerra de classes é possível instituir o comum que não é o idêntico ou universal dos ideólogos. Mas tampouco o é o diverso dos relativismos do pensamento separado.

Se negamos o universalismo do mercado, dos Estados e da razão ocidental, que pretendem nos fornecer uns, a realidade, a outra, os critérios universais, idéias, conceitos, normas, imperativos ou o que seja como adequados à natureza das coisas, como negação do múltiplo e do diverso negado que somos, tal afirmação, contudo, não implica qualquer espécie de relativismo ou qualquer crítica "pós-moderna" à razão, pois que se trata, para nós, precisamente de superar o ponto de vista autonomizado no qual também tais oposições – razão /irrazão, Filosofia/Poesia, verdade/sentido – ou quaisquer outras que as mentes tão férteis quanto inférteis são as vidas dos profissionais do pensamento sejam capazes de formular.

E não aceitamos tal ponto de partida na medida mesma da nossa recusa ao mundo das separações que eles realizam na forma autonomizada do pensamento, na encarnação, sempre renovada, seja do ideal universalista da razão, seja do "sentido do ser" – que na sua pretensão de dizer o múltiplo reduz, ainda e sempre, como há de ser com todo pensamento separado, o diferente ao idêntico, levando ao requinte a abolição da diferença. Nada temos em comum, assim, com qualquer dos esforços filosóficos – ou filosoficamente anti-filosóficos – que, partindo sempre de um princípio universal qualquer (a razão, o Ser, Deus ou o Valor, como expressão encarnada de uma finalidade obscura) que se crê senhor da existência humana, pretende integrar e submeter a si o diverso da experiência em toda a sua dimensão múltipla.

No pensamento moderno – e pós-moderno – o que permanece, ainda e sempre, é a brutal ilusão de um pensamento capaz de, em sua autonomia ilusória, governar o mundo. Que os senhores de outros tempos, os gregos, por exemplo, pudessem expressar a sua livre condução da vida – erguida por sobre as submissões fêmeas e escravas, lembremos sempre – é algo que não assombra, vez que ao menos alguma relação com a experiência ela mesma possuía tal pensamento e as reflexões ali realizadas tinham, ao fim e ao cabo, uma relação com a experiência da decisão. Se já aí, esta era uma discussão dos senhores, constituída na e pela expropriação da possibilidade do acesso ao diálogo e à decisão da totalidade das mulheres e da maior parte dos homens (porque já antes era fundada na expropriação mesma do poder sobre si mesmos destas mulheres e homens), o tenebroso e estéril arremedo, realizado permanentemente pelos especialistas do pensamento, de buscar respostas geniais para os dilemas humanos em suas mentes inspiradas e iluminadas – os ideólogos e os filósofos – é a própria encarnação da impotência a mais absoluta, a busca de substituir pela especulação ou pela poetização a potência real do mudar a vida à qual nos convidava Rimbaud, o poeta d@s proletarizad@s insurretos. Tanto mais amplia-se o domínio do mercado, tanto mais crescem as vozes impotentes dos especialistas com a "última" novidade filosófica ou antifilosófica. Como dizia já Kierkegaard – um velho pensador ocupado com a existência na sua concretude –, "assim como os produtores de mercadorias que lançam ao fogo suas mercadorias para valorizar seus preços, os filósofos, nestes tempos, estão sempre" – e ainda é sempre – "jogando os sistemas e idéias precedentes ao fogo a fim de justificar as suas próprias".

Tal comparação de Kierkegaard, por certo, não é casual nem estilística. Ao contrário, estabelece a relação visceral desta impotência do pensamento autonomizado em sua necessidade auto-justificadora com a sua fonte concreta, a impotência do homem moderno frente à lógica autonomizada do valor, aquela mesma da qual nos fala Marx. É precisamente enquanto é realmente impotente diante do mundo opressor do mercado que o pensamento autonomizado dos filósofos e dos ideólogos é incapaz de ir além de si mesmo. Assim, temos os sistemas, os dogmas, ou as cartilhas – mais ou menos refinadas – conforme a possibilidade de delirar da razão raciocinante do ente delirante em questão.

Temos assim, sempre ao sabor daquelas unilateralidades mencionadas anteriormente (aqui referidas às preferências e idiossincrasias do freguês, como deve ser com toda mercadoria no mundo da multiplicidade ilusória da concorrência mercantil), desde a sofisticação intelectual dos sistemas de pensamento sempre renovados por seus respectivos epígonos – seja os mais sofisticados, como um Kant, ou um Hegel, ou ainda um Heidegger à moda francesa ou os primos pobres, os ideólogos com menor sofisticação do "pensamento ele mesmo" e seus pobres e rudes manuais do stalinismo, suas receitas de materialismo histórico e dialético do kautski-lenino-mao-trostsky-guevarismo sobre como acabará o mundo e o juízo final – ou temos ainda quaisquer cartilhas com sabor de sempre free de algum anarquista dogmático prestes a aniquilar aquele que ouse por em questão a CNT-FAI na Revolução Espanhola ou o sacrossanto cooperativismo proudhoniano (hoje, tristemente, a servir de cartilha para o cooperativismo do Banco Mundial).

Temos, também no mercado das ideologias, como de resto no mercado de esperma, sangue ou sementes geneticamente modificadas, a necessária competição que torna cada mercadoria "imprescindível" na sua novidade. "Os amigos da verdade haverão de escolher a minha", diz o ideólogo, assim como a Monsanto diz que as suas sementes são as melhores, entre as geneticamente modificadas. Aqui, como ali, entretanto, se trai uma mesma e única identidade: o "livre desenvolvimento do mercado" conduz ao monopólio, necessária e inevitavelmente. Assim como a dinâmica do mercado, onde, ao final, só triunfa o monopólio, o pensamento autonomizado diz: a verdade está no meu enunciado. Um e outro, Highlanders ambos: só pode haver um, nos diz o mercado, só pode haver um, nos dizem os ideólogos e Filósofos (mesmo quando estes nos dizem que o um pode ser também muitos, como nos liberalismos e nos relativismos). Que a imortalidade pretendida, à semelhança do highlander, passa a muitos milênios-luz daquilo que somos, na nossa mísera mortalidade, é algo que escapa e escapará sempre ao portador da verdade, mesmo quando ela mais diz afirmar essa própria mortalidade.

Ora, conhecemos muito bem os efeitos da afirmação das verdades únicas. Afinal, nos nossos tempos, ela entrou em colapso, assim como entrou em colapso o Estado do Bem-estar social. Ao colapso real do Estado do Bem-estar, expressão necessária do desenvolvimento monopólico da economia e sua crise de acumulação, é oposta a ideologia do "neoliberalismo", tão cínica quão expressiva dos limites necessários à manutenção da reprodução do valor. O monopólio real realiza-se, absoluto, ao mesmo tempo em que é apresentado sob a forma da ideologia do "livre mercado". De outra parte, o estatismo deslavado – à esquerda e à direita – é substituído pelas tentativas de adaptação do velho "universal" do Estado total às exigências de diversidade – seja no "multiculturalismo", ou na ampliação da cidadania às ditas minorias, seja através da flexibilização dos discursos das vanguardas tradicionais com suas críticas ao "partido único" (mas não ao partido ele mesmo e à representação enquanto tal). Tal insurreição da falsa diferença se faz notar também, como não pode deixar de ser, na "boa consciência filosófica". Assim, os relativismos os mais diversos se opõem, triunfantes, aos universalismos caducos do século passado e de toda a tradição.

Em todas estas dimensões, entretanto, estamos ainda e sempre em face da ideologia, do pensamento autonomizado. Seja a ideologia neoliberal, seja o neobolchevismo, seja a socialdemocracia, sejam os Filósofos avançadinhos ou atrasadinhos, todos estes discursos mantêm a unidade essencial ao mesmo do mercado e do Estado. Eles são pensamentos invertidos do mundo invertido no qual vivemos e assim conseguem apenas, tanto mais se esforçam para integrar tudo a si – e tudo é cada vez mais claramente a diferença que se recusa à captura –, ser o arremedo da diferença efetiva, da negação que somos.

Se a nossa experiência de negação não é aquilo que dela quer nos fazer crer a racionalidade produtivista da modernidade, se a experiência humana, como experiência social vai além de toda a possibilidade de captura pela razão calculadora, é precisamente na medida em que ela foge à pretensão de reduzir a sua multiplicidade à identidade. Possamos, na construção comum da recusa e da negação, fazer o conteúdo coincidir com a frase, enunciação e anunciação da recusa ingovernável do múltiplo que somos. Digamos pois, junt@s, a negação que junt@s fazemos. Digamo-la de modo radical porque e enquanto fazemo-la radicalmente irrecuperável.

Se somos inimig@s da economia política e recusamos os rótulos ideológicos assim o somos apenas na medida em que compreendemos o nosso esforço de negação, também ele, como parte desta negação que é, em sua radicalidade, negação do mundo da economia política; negação que é de muit@s. E, sendo de muit@s, não é de nenhum corpo de especialistas; não parte, portanto, de nenhum saber separado, de nenhuma ideologia. E tampouco chega a nenhum saber separado, a nenhuma enunciação por pouc@s daquilo que é feito por muit@s.

 

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