A festa popular, lugar da transgressão

Josiane Ribeiro

Ao refletir sobre a cultura popular, o historiador inglês Edward Thompson afirma que a Revolução Industrial constituiu o pano de fundo de uma das maiores transformações da história, posto que desvinculou as expectativas e as necessidades dos indivíduos da esfera da cultura popular e dos costumes tradicionais, deslocando-as para a realização no mercado. Com isso, Thompson procura enfatizar que o desenvolvimento do capitalismo fez-se acompanhar de um processo de recriação da natureza humana, o que atualmente também se expressa na emergência de uma cultura burguesa monopolizadora, racista, consumista e presa à esfera da mais medíocre e infrutífera superficialidade.

Na medida em que entendemos cultura como uma totalidade de hábitos, valores, costumes, crenças e práticas, podemos compreender o impacto corrosivo da cultura burguesa hegemônica, diante do atual quadro desastroso de degeneração radical da própria condição humana, quando esta mesma está submetida à pressão sufocante de uma sociedade organizada a partir da lógica incansável do mercado de transformar dinheiro em mais dinheiro.

Sendo assim, vivemos numa espécie de ditadura da imagem, onde o indivíduo "vale" mais ou menos pelo tipo de carro que possui, da grife do jeans ou do bairro em que ele mora. A sociedade de mercado torna o homem um objeto útil apenas e somente enquanto peça de reprodução do próprio capitalismo, e assim tornado coisa é também como objeto que ele vivencia as suas diversas experiências cotidianas sejam profissionais, familiares, amorosas ou sociais.

Mais uma faceta do mesmo processo, as formas de lazer ditadas pela cultura burguesa guardam uma relação de absoluta sinonímia com o consumo. Antes de tudo o consumo de imagens, atualmente veiculado pela promoção de grandes espetáculos, que no caso de Fortaleza são agenciados basicamente pelo que se denomina arbitrariamente Centro Cultural Dragão do Mar (não por acaso, a idéia de "Centro" remete diretamente à de monopólio). Esses grandes shows, com ingressos vendidos a preço de banana, reservam para o público imobilizado na condição de platéia o aplauso ao final do espetáculo. A respeito deste tipo de imposição "cultural", Duvignaud ressalta que "a potência se faz espetáculo em representação para conquistar a adesão, para massificar as almas e os corpos com um espetáculo fascinante e reduzir as diferenças na unanimidade da obediência".

A prisão do indivíduo na categoria de consumidor torna-se mais flagrante diante da explosão de shopping centers em praticamente toda a extensão da cidade. Até mesmo os tradicionais mercados e feiras populares têm sido retirados de seus locais tradicionais e remodelados segundo os moldes destes grandes centros do consumo. Neste espaço milimetricamente organizado para estimular o consumo, diversão significa caminhar entre vitrines em busca das incessantes novidades que a industria lança cotidianamente no mercado, num movimento constante de conferir ao artigo mais supérfluo a imagem de algo absolutamente necessário.

Diante deste monopólio da cultura burguesa, pouco espaço resta às festas populares tradicionais, que vêm sendo progressivamente desarticuladas e esquecidas. Um pouco de atenção aos aspectos constitutivos das festas populares torna perfeitamente compreensível o interesse dos representantes do capital no seu desaparecimento.

Antes de qualquer coisa as festas populares representam divertimento, mas um divertimento que não se vincula a nenhuma finalidade que não seja a plena satisfação de seus sujeitos. As festas populares demarcam uma ruptura com a rotina massificante do trabalho. Vemos então a primeira contradição com o capitalismo contemporâneo, que aliena até mesmo o "tempo livre" do indivíduos submetendo-o à lógica da produção de lucros. Em outro sentido, as festas populares concretizam a destruição de toda e qualquer distinção ou hierarquia social durante a sua realização. Se o tempo da festa é aquele do não-trabalho, o espaço da festa é o espaço da liberdade absoluta e das relações de igualdade radical entre os seus participantes. As imagens estabelecidas pela ordem socio-econômica reinante são desmistificadas e escarnecidas e veiculam o riso vingativo do povo em festa.

Michail Bakhtin insiste na importância deste aspecto das festas populares, quando ressalta que nas ocasiões festivas "o indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre os seus semelhantes. O autêntico humanismo que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da imaginação ou do pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente esse contato vivo material e sensível".

Importa perceber que as festas não operam simplesmente um desvio dos códigos opressores estabelecidos, mas antes, que elas concretizam a experiência de uma vida cujas regras obedecem unicamente ao desejo de satisfação e gozo populares. Logo, as festas pressupõem uma outra condição humana, gritantemente oposta àquela do homem econômico que o capitalismo vem moldando no barro da alienação. Nesse sentido, a substância das festas populares reside na pura transgressão. Ao contrário dos grandes espetáculos que têm como contraponto espectadores inertes no sono da passividade, nas festas populares não existe separação entre atores e espectadores, todos são sujeitos atuantes na realização dos festejos, e estes assumem o movimento do desejo e ação coletiva. Durante a festa, homens e mulheres são arremessados diante da própria interioridade. Percebem-se e relacionam-se a partir da compreensão da singularidade de cada existência, da peculiaridade de cada indivíduo.

As festas concretizam, então, a igualdade de todos os seus sujeitos pela dissolução das diferenças sócio-econômicas, ou seja, pela dissolução da imagem da diferença social e, por outro lado, identifica-os pela compreensão e respeito pleno da diferença de cada um. Nesse sentido a multidão em festa representa uma coletividade auto-organizada a partir da negação e do escárnio de todas as formas de coerção e exclusão, onde os indivíduos experimentam uma relação entre iguais e se compreendem como parte indissolúvel deste corpo coletivo e popular. Portanto, as festas populares fazem as pazes com o tempo, pois possibilitam a experiência concreta de uma organização coletiva voltada para a negação da ordem capitalista, e projetam para o futuro a perenização de um mundo melhor.

Torna-se imperiosa, para todo aquele que faz da sua vida uma luta contra o capital, a necessidade de retomar as festas populares, justamente pelo seu potencial de denúncia e de repúdio diante exclusão e opressão brutais operacionalizadas pelo capitalismo. Importa a experiência de uma segunda vida livre, alegre e justa para quebrar o muro de alienação erguido diante dos olhos dos oprimidos. Importa sobretudo fazer da alegria e do gozo popular um instrumento de luta, um instrumento de libertação.

 

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