Notas sobre a crítica do urbanismo

Tyrone

O urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário (Guy Debord).

A imensa e acelerada modernização das relações capitalistas impôs à vida cotidiana contemporânea a exacerbação das contradições no uso do espaço urbano que se demonstram, nas condições atuais, cada vez mais incontroláveis. Os homens que, em períodos histórico determinado, criaram na cidade um espaço possibilitador de relações sociais superiores – relações universalizantes e, por isso, imensamente mais criativas que as vigentes durante as formações sociais agrário-familiares – hoje são sujeitados à condição de servos do espaço urbano. A primeira e imediata constatação da vida contemporânea na cidade – onde as ruas e praças tornaram-se espaço das coisas e não dos homens – é a da experiência humana oprimida pela forma alienada do uso do espaço urbano.

Na base social do uso alienado da cidade está o primado das relações mercantis que caracterizam o mundo capitalista. O processo de centralização e concentração do capital, na fase histórica da monopolização da economia – particularmente no período do segundo pós-guerra –, provocou um processo de intensa ampliação das relações mercantilizadas a esferas e níveis de sociabilidade nunca antes vistas. Quando a vida tornou-se, sob o domínio do sistema de acumulação capitalista, totalmente economizada, o uso da cidade adquiriu uma feição particularmente opressiva.

O espaço da cidade tornou-se, nesse processo, domínio do valor de troca. As trocas das mercadorias são fatores dia-a-dia mais decisivos na ocupação da cidade. As ruas transformaram-se, de local de circulação de mulheres e homens, em lugares de escoamento das mercadorias. As praças, antigo espaço do encontro, do bate-papo e da festa, passou a ser o lugar do comércio. E como para o sistema econômico produtor de lucros o custo de produção baixo é o fator principal, a subjugação das relações humanas à circulação mercantil banalizou completamente as necessidades imediatas das pessoas no espaço da cidade.

Tal processo de economização do espaço urbano é a chave de compreensão da importância crescente que as lutas urbanas vem adquirindo nos tempos recentes. À autonomia da reprodução capitalista – que, no uso da cidade, adquire a forma da autônoma valorização do espaço – o proletariado – de forma, decerto, ainda não desenvolvida – tem expresso alguns importantes elementos para a constituição de uma forma de uso do espaço urbano. O recurso extensivo das ocupações de prédios e terrenos – ocupações, em sua maioria, organizadas pela iniciativa autônoma de famílias sem-teto – é a marca de uma realidade que, ao prefigurar novas relações não submetidas às exigências da troca de mercadorias e ao realizar um uso racional e correspondente às reais necessidades dos homens, faz dos conflitos urbanos mobilizações objetivamente voltadas para a destruição da ordem capitalista. Se levarmos em conta o processo histórico de industrialização e urbanização do mundo moderno, da centralização dos poderes econômico, político, militar e cultural nos centros urbanos, é mais clara a centralidade da luta urbana para a superação do capital.

Do ponto de vista do capital, o controle urbano apresenta, assim, uma importância central na atual fase do sistema produtor de mercadorias. De um lado, a concorrência monopólica exige uma racionalização mercantil altamente desenvolvida, de outro, os conflitos urbanos ameaçam constantemente a realização do capital. Torna-se intrínseco à forma contemporânea do uso do espaço, dessa maneira, a emergência do urbanismo como um mantenedor central da reprodução capitalista. Como especialidade de um mundo administrado, o urbanismo constitui-se em uma forma de controle do espaço onde o que prevalece é a adaptação de sua racionalidade às lógicas do mercado e do Estado, lógicas estas que constituem relações sociais indiretas e reificadas.

O método do urbanismo é, nesse sentido, a reforma urbana voltada para fazer com que o espaço cumpra com as exigências do tráfico mercantil. Em sua lógica, os homens são tomados como objeto de controle, como meio, e não como fim no uso do espaço.

Dessa forma, é de maneira abstrata que o urbanismo encara o espaço. O capitalismo monopolista altamente desenvolvido unificou o espaço, mas numa unidade abstrata. O processo de industrialização capitalista caracterizou-se pela submissão do campo à cidade. Como exacerbação dessa contradição entre o campo e a cidade, observamos hoje o processo de urbanização do campo – onde não só a auto-estrada marca a presença da lógica urbanística sobre o espaço tornado único abstratamente pela mercantilização, mas também todas as formas de territorialização modernizadora assim o faz.

A reboque da unificação abstrata do espaço no capitalismo atual, temos a universalização do urbanismo, controlando novas esferas e novos níveis de sociabilidade. Foi sob o urbanismo capitalista que, pela primeira vez, surgiu uma arquitetura voltada para as massas trabalhadoras – o que antes era um atributo exclusivo das classes possuidoras. É assim que só uma perspectiva não crítica ao urbanismo pode encarar com satisfação a construção em massa de conjuntos habitacionais ou a estruturação de redes de transporte coletivos – trens, metrôs e ônibus. A abstração do fato de que o consumo urbano compõe o processo de produção mercantil permite a legitimação do urbanismo nas abstratas relações burguesas. O urbanismo constitui o simulacro da pseudo-coletividade onde a verdadeira disposição é a submissão da coletividade à economia.

A luta que o proletariado contemporâneo de todo o mundo vem travando contra o domínio do capital constitui, portanto, uma crítica prática ao urbanismo capitalista. Essa crítica realiza-se nas ações concretas do uso do espaço pela classe oprimida e combatente, na medida em que submete a economia à consciência histórica dos homens. Nossas ações não tateiam entre os princípios abstratos e as ações impensadas; elas se valem da rica espontaneidade do movimento combinada à poderosa arma da consciência. A crítica do urbanismo constitui, assim, o sujeito material da transformação, cuja ação autônoma representa seu motor.

 

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