500 muitos mil réis

Yuri

"Nada suscitou nos homens tantas ignomínias como o ouro. É capaz de arruinar cidades, de expulsar os homens de seus lares; seduz e deturpa o espírito nobre dos justos, levando-os a ações abomináveis; ensina aos mortais os caminhos da astúcia e da perfídia, e os induz a cada obra amaldiçoada pelos deuses" (Sófocles, Antígona).

Desde o ano passado se desenvolve uma campanha nacionalista cujo objetivo seria promover o orgulho cívico em torno de "desenvolvimento" do Brasil, tal como a "história oficial", a história escrita e divulgada pela elite, vem há séculos promovendo.

Antes de nos remeter ao que está por trás dessa alienação que embaça a realidade e retira dos indivíduos sua condição de sujeitos da história, tornando-lhes coadjuvantes dos heróis e personalidades que pretensamente a fizeram, gostaria de voltar nosso senso crítico ao início da chamada "idade moderna", quando se formaram as condições para o surgimento do capitalismo e suas relações sociais burguesas, sua expansão (e é justamente neste ponto que entra em cena o "descobrimento" da América e, por conseguinte, do Brasil) e sua consolidação enquanto modo de produção que, tal como um imenso Narciso mitológico moderno, destrói todas as relações sociais e econômicas que lhe eram estranhas e que não tinham a sua face burguesa, bem como a cultura (aqui entendido como o próprio modo de vida) de todos os povos do mundo.

Europa, séculos XIV e XV: da expropriação...

"- De onde veio sua riqueza?

Meu pai deixou pra mim.

E como seu pai a conseguiu?

O pai dele deixou pra ele, que por sua vez conseguiu com o pai dele..."

Esta pequena fábula nos remete ao início da questão: quem foram os pais da atual elite burguesa e como eles conseguiram acumular riquezas em sua mãos? Ou seja, como surgiu o capitalismo?

Sabemos que a produção capitalista ocorre apenas quando os meios de produção encontram-se apropriados pelos capitalistas e há um grande contingente de mão-de-obra disponível cuja única alternativa para sobreviver é vender a sua força de trabalho.

As relações pré-capitalistas são predominantemente agrícolas, em cuja atividade estão os principais meios de produção, entre eles a terra. Ora, a hstória da acumulação primitiva do capital constitui-se exatamente da expropriação desses meios de produção dos camponeses, criando, assim, a classe dos trabalhadores assalariados para o capital agrícola e industrial.

A base da transição do feudalismo ao capitalismo está nessa expropriação, que se realizou em toda a Europa Ocidental, evoluindo com as características próprias de acordo com a cultura e a vida cotidiana de das diferentes regiões.

Demonstrando esta mudança histórica através de uma análise na vida social da população inglesa nos séculos XIV e XV, que nesta época vivia principalmente no campo, Marx nos diz que os camponenses livres, aqueles que já não tinham nenhum laço de servidão com os senhores feudais e que já compunham, a partir do século XV, a grande maioria da população, foi expulsa de suas terras para dar lugar à criação de carneiros, de onde se obtinha a lã para as nascentes manufaturas. Assim, a nobreza inglesa, já com uma nova mentalidade sobre o poder do dinheiro, transformou todas as terras em cultivo para pastos de carneiros.

A Reforma Protestante também impulsionou a expropriação violenta dos camponeses, pois as terras confiscadas à Igreja Católica, a maior proprietária das terras inglesas, eram doadas ou vendidas pelos nobres aos burgueses ou arrendatários especuladores, que expulsavam os antigos colonos.

A acumulação primitiva teve também como uma de suas causas o roubo do "tesouro público". A partir da Revolução Gloriosa que levou ao poder Guilherme III, príncipe de Orange, Marx afirma que foi inaugurada uma "nova era com uma dilapidação verdadeiramente colossal do tesouro público. Os domínios do Estado, roubados até essa data com moderação, dentro dos limites da decência, foram extorquidos à viva força do rei adventício como compensação devidas aos seus antigos cúmplices, ou vendidos a preços irrisórios, ou enfim, sem formalidade alguma, anexadas a propriedades privadas. Tudo isso se fez a descoberto descaradamente, desprezando-se mesmo as aparências legais" (Marx, O capital).

Bem se vê, a corrupção está presente desde o nascimento do capitalismo, sendo intrínseco a ele, fazendo parte de sua moral e de toda a sua história.

... ao disciplinamento forçado do trabalho assalariado.

A criação de um numeroso proletariado que se seguiu à expropriação dos camponeses era maior e mais rápida do que a sua absorção pelas manufaturas. Também a absorção, pelo proletariado, das novas relações de produção que era obrigado a enfrentar nas novas condições, essa absorção não estava clara em sua cabeça. Era necessário, pois, discipliná-lo para o trabalho assalariado e reprimir os que, por falta deste, tornavam-se mendigos ou ladrões.

Daí que se segue uma das mais violentas repressões disciplinadoras (a seguir à repressão expropriadora) de que se tem notícia na história da humanidade, pois a nova classe dominante tratava os trabalhadores – diz Marx – "como criminosos voluntários, supondo que dependia de seu livre arbítrio o continuar trabalhando como no passado e como se não tivesse sobrevindo nenhuma mudança em sua condição de existência".

Tornando claro esse processo histórico, Thomas Morus, em sua célebre obra Utopia, assim o descreve: "Assim sucede que um ávido e insaciável glutão (...) pode apoderar-se de milhões de acres de terras, cercando-as de estacas e postes ou atormentando seus proprietários com injustiças que os obriguem a vender-lhe tudo. De um modo ou de outro, era mister que abandonassem suas fazendas, todas estas pobres e simples pessoas, homens, mulheres, esposas, órfãos, viúvas e mães com seus filhos e todo o seu haver (...) Era necessário, digo, que arrastassem seus passos longe de seus antigos lares, sem encontrar um lugar de repouso. (...) E, vagando daqui para ali, tendo comido até o último centavo, que podiam fazer senão roubar, e então, santo Deus! Ser enforcado com todas as formalidades legais ou ir mendigar? E são ainda lançados nos cárceres porque levam uma vida errante e não trabalham, eles a quem ninguém no mundo quer dar trabalho, por solícitos que sejam, oferecendo-se para todo e qualquer gênero de serviços".

Assim, milhares de ingleses foram executados, açoitados, acorrentados, presos, tinham sua orelha amputada, a face marcada a ferro, podiam ser vendidos, alugados ou legados por testamento. Ainda não estou me referindo à escravidão dos negros da África, estou falando de uma opressão contra os trabalhadores da Europa! A estas leis que legalizavam a morte, a tortura e, em muitos casos, a condição de escravos aos trabalhadores europeus, contrariando até mesmo o "trabalho livre assalariado", Marx chamou de "a legislação sanguinária contra os expropriados".

A história também registra, nessa época, o massacre contra a infância, em que crianças a partir de 5 anos de idade trabalhavam no mínimo 16 horas todos os dias, não tendo direito a lazer, educação, férias ou descanso semanal.

Este foi, pois, o destino dos pais da atual classe trabalhadora, que os livros de história escondem, divulgando apenas as técnicas na produção e as descobertas científicas desse momento, além dos feitos dos reis e suas intrigas palacianas – a histórias dos "grandes homens", portanto.

O "Novo Mundo"

É justamente neste contexto que ocorre o "descobrimento" do romanticamente chamado "Novo Mundo". A burguesia nascente, ávida por descobrir mercados que pudesse gerar lucros fabulosos e proporcionar acúmulos de capital, parte em todas as direções, iniciando o ciclo das "grandes navegações".

As regiões auríferas e argentíferas da América, a escravização de indígenas no trabalho das minas (e seu conseqüente extermínio), a conquista e a pilhagem nas Índias Orientais, o tráfico de escravos africanos para as colônias americanas e as guerras mercantis entre os países europeus possibilitavam uma formidável acumulação de riquezas, onde se incluía o regime colonial, a finança moderna e o protecionismo econômico, todos apoiados pelo poder do Estado, acelerando a passagem para a ordem capitalista.

Esses meios de acumulação foram sempre acompanhados pela extrema violência contra os povos de todo o mundo. Cerca de 100 milhões de negros foram convertidos em escravos, um número até hoje incalculável de índios de toda a América exterminados, além de milhões de asiáticos, entre hindus, chineses etc.

Por este tempo, as Igrejas Católica e Protestante forneceram grandes préstimos ao fornecer elementos ideológicos que legitimaram a dominação e o extermínio desses povos, seja pela destruição física ou cultural. Assim, a Igreja Católica legitimou a escravidão negra e destruiu a cultura indígena nas colônias íbero-americanas, da mesma forma que os protestrantes, para quem o lucro tornou-se o ideal da cultura cristã (tal desejo, para os calvinistas, era inerente à natureza humana...), ofereciam dinheiro pela morte de índios norte-americanos.

Aqui no Brasil, o processo histórico não se deu de maneira diferente. Pelo contrário: a constituição da colônia brasileira esteve de acordo com a organização desse processo mundial, desde o papel assumido de colônia de exploração até os dias de hoje – um país de economia periférica, muito distante dos centros capitalistas.

O domínio do Estado sobre os povos que aqui vivem ou viveram é uma síntese do genocídio dos povos indígenas, da escravidão negra e do capitalismo europeu. Nossa história, desde o início, é marcada pela exploração e pela dominação que se arrastam até hoje, e nosso único orgulho deve ser os momentos históricos em que os indivíduos, de uma maneira ou de outra, se rebelaram contra as condições de opressão tão presentes em nosso assado e presente: as revoltas indígenas, as rebeliões negras e a formação dos quilombos, a Conjuração Bahiana, a Cabanagem, a Insurreição Pernambucana, a Farroupilha, os Malês, a Sabinada, a Balaiada, a Revolta Praieira, Canudos, o Contestado, a Confederação do Equador, o Caldeirão, Pau de Colher, Chibata, Quebra-quilos, Ronco da Abelha, Guerra das Mulheres (pela primeira vez na história do Brasil um movimento insurrecional de participação preponderante das mulheres, em 1875/6, em alguns Estados do Nordeste), a Revolta da Vacina, as conquistas trabalhistas do movimento operário e a primeira greve geral, em 1917, o anarco-sindicalismo, o levante comunista de ‘35, as Ligas Camponesas, o movimento estudantil, as resistências contra as ditaduras, os movimentos culturais, a contracultura, o movimento anarcopunk, a luta dos movimentos ecológicos, anti-racistas, contra a homofobia, de mulheres, de juventude, camponeses, grevistas, aqueles que não foram mencionados (são tantos!) ou que a história não registra ou que não passaram de simples intenção de sonhos utópicos... Esta é a nossa história!

500 anos de quê?

Estamos agora, portanto, bem longe da história oficial. Mas ainda resta uma dúvida: o que se esconde por trás da ideologia nacionalista promovida pelos meios de comunicação? Na verdade, este fenômeno, verificável na última década em quase todos os países do mundo (inclusive com a chegada de forças conservadoras, fascistas e neonazistas) à frente de alguns Estados nacionais), ocorre num momento histórico em que a pauperização é tudo o que o capitalismo tem a oferecer aos trabalhadores, a barbárie imposta a continentes inteiros e o desprezo absoluto pela vida humana, que põe em ameaça a própria existência da humanidade. Este nacionalismo é usado para mascarar a realidade, esconder os agentes causadores de miséria, promover a intolerância, o ódio e a desconfiança entre os trabalhadores e marginalizados, e fazer surgir neste país um sentimento de esperança através do trabalho e do progresso junto às nações capitalistas em decadência. A ideologia da democratização do Estado e da cidadania, as campanhas cívicas, o "amor à bandeira nacional", a "pátria de chuteiras", a crença na justiça, na lei, no parlamento, enfim, no Estado, que representaria os "interesses de todos".

Esta campanha nacionalista tem o objetivo de homenagear a história dos vencedores, de legitimar a colonização e a exploração no passado, cujo sentido seria a divulgação de uma imagem passiva e cordial dos dominados, o esquecimento e o perdão da opressão aviltante a que os povos foram submetidos à época, de modo que no presente também se faça a a mesma imagem, ou seja, a de um povo "pacífico", "ordeiro" e alegre (afinal, temos o carnaval e lindas mulatas, "mercadorias" para exportação...).

Desta maneira, aos povos indígenas e africanos, seqüestrados de sua gente e tendo sido obrigados a abandonar sua cultura, seus valores materiais e espirituais, é reservado o esquecimento de sua dor e de sua antiga forma de exploração, a escravidão, já que conquistaram juridicamente uma abstrata igualdade, escondendo-se assim a escravidão moderna, aquela que não aparece com tanta clareza, a que transformou em favelas as antigas senzalas, em polícia os antigos capitães-do-mato e bandeirantes, em salas de televisão os antigos aldeamentos jesuíticos – ou seja: a escravidão assalariada.

Agora, como no começo, as opressões indígena, negra e proletária são solidárias: em sua origem, em sua dor e em sua luta. Compreender que o sistema colonial e o tráfico de escravos nasceram juntos com a expropriação dos camponeses europeus e o seu disciplinamento para o trabalho assalariado é compreender, afinal de contas, que estamos falando é do capitalismo.

 

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