EDITORIAL

Os sinais do novo "assalto aos céus"

As proposições teóricas dos comunistas não se assentam de modo nenhum em idéias, princípios, inventados ou descobertos por este ou por aquele aperfeiçoador do mundo. São apenas expressões gerais de relações efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante de nossos olhos. (Marx e Engels, Manifesto Comunista, 1848).

 

As profundas transformações no capitalismo contemporâneo vão, aos poucos, impondo ao proletariado a necessidade de descobrir, em sua espontaneidade própria, suas novas lutas: novas formas e novos conteúdos de luta.

É visível o limite das formas tradicionais de luta, tais como o sindicalismo nacional de categorias: os atuais níveis de competitividade entre os grupos monopolistas - competitividade que se manifesta numa concorrência que cada vez mais tem como terreno o mercado mundial - diminuem as chances de combate no terreno puramente "econômico" das categorias e, principalmente, se tais lutas se restringem ao âmbito nacional. Na medida em que têm que se defrontar com seus concorrentes no plano mundial, de acordo com uma média do tempo do trabalho constituidor de valor que se define no plano das trocas mundiais, as empresas têm cada vez menores possibilidades de "concessões salariais" (ou de outro tipo). É um limite objetivo imposto pela concorrência intermonopolista mundializada frente a um mercado consumidor cada vez mais estreito. São empresas que, nos últimos anos, tiveram que aumentar seus investimentos em capital fixo (particularmente em recursos tecnológicos) com o objetivo de diminuir os gastos com força de trabalho e, em conseqüência, poder comparecer ao mercado com mercadorias de melhores qualidades e menores preços. Mas, com isso, ao eliminarem progressivamente o trabalho vivo do processo de produção, diminuíram a própria massa de valor produzida; conseqüência: a queda das taxas de lucro. Para resistir a essa queda, cuja tendência é persistente, os monopólios mundiais (e, em decorrência, os órgãos internacionais e Estados nacionais) passaram a impor uma série de medidas com o objetivo de elevar - sem aumentar demais os investimentos em novos recursos tecnológicos - as taxas de lucro; entre essas medidas se encontram a reorganização da produção ("just in time", "toyotismo" etc.), a terceirização da produção, a flexibilização das relações jurídicas de trabalho, confiscos e arrochos salariais, e assim por diante. A imensa mobilidade do capital, própria da sua internacionalização, que lhe permite parcelar a produção em diversos países e regiões do globo (segundo o critério dos mais baixos custos, principalmente salariais), é uma possibilidade própria do seu atual nível de centralização; e, por isso mesmo, esse capital concentrado representa por si só um poder político frente ao proletariado, na medida em que, pelo poder econômico, consegue impor suas "exigências" e "regras" ao mercado da força de trabalho.

Nessas circunstâncias, a luta do proletariado deve estabelecer-se também no plano mundial. Mas, para isso, o proletariado deve aprender a agir nessas novas condições. Esse aprendizado não é fácil após décadas de lutas econômicas inseridas nos marcos do Estado nacional e da "economia nacional". Mas é justamente esse "aprendizado" que, espontaneamente, o proletariado começa a adquirir. Como temos falado já há algum tempo, a insurreição em Los Angeles (EUA) em 92 e, depois, a greve de dezembro de 95 na França marcaram o início de toda uma retomada de luta dos trabalhadores, a partir dos próprios países capitalistas centrais. Os melhores frutos desta retomada são as lutas proletárias (até então "econômicas") que, seguindo a estrutura mundializada dos monopólios, ultrapassam os marcos nacionais. A greve da Renault, na Bélgica, que mobilizou a solidariedade dos trabalhadores dessa empresa em diversos países (principalmente a França, mas também em Espanha e Eslovênia), greve que, na Bélgica, assumiu formas radicalizadas de enfrentamento com a repressão burguesa, impulsionando manifestações conjuntas com outros países e “eurogreves”, é uma dessas experiências que poderíamos citar; mas também a greve conjunta, no ano passado, dos metalúrgicos dos EUA e do Canadá, ou ainda a greve dos caminhoneiros franceses, cujo desenvolvimento contou com a adesão dos caminhoneiros de toda a Europa, ou, por fim, a jornada contra o desemprego que mobilizou trabalhadores de toda a Europa em uma caminhada que, após percorrer diversos países, concluiu, no primeiro semestre do ano passado, em violentos atos de protestos durante a reunião do G-7, em Genebra. Essas lutas em formas internacionais demonstram, positivamente, uma tendência fundamental: o proletariado está reaprendendo a lutar no plano internacional, acompanhando a própria mundialização do capital, e capacitando-se, assim, a também pôr-se objetivos mundiais.

A importância dessa internacionalização das lutas é um contraponto objetivo ao fato de que, na atual dinâmica de internacionalização do capital, as lutas de classes no âmbito nacional esgotaram-se tendencialmente. Mas, precisamente devido a esse esgotamento tendencial, os reflexos - no âmbito nacional - das contradições e da crise do mercado mundial provocam, em certos casos, reações do proletariado cujo ímpeto e energia ultrapassam de fato a lógica dos movimentos reivindicatórios cuja referência é - ou era - o Estado nacional. Assim, trabalhadores que não acumularam nenhuma experiência sindical ou política vêem-se, frente a situações para as quais não são suficientes os canais tradicionais de "negociações sindicais", levados a reagir violentamente a ataques das suas condições de vida, desenvolvendo em suas mobilizações, em pouco espaço de tempo (dias apenas), de reivindicações tópicas para ações insurrecionais. Tais são os casos dos trabalhadores albaneses, em 97, e dos trabalhadores (vanguardeados pelos seus elementos jovens) na Indonésia, em 98. Particularmente a insurreição albanesa merece destaque: a reivindicação de devolução da sua riqueza monetária expropriada por "pirâmides" patrocinadas pelos bancos, sob os auspícios do governo, desembocou, em poucos dias, na completa destruição do Estado, em todas as suas instâncias. Mais ainda: espontaneamente, os trabalhadores albaneses redescobriram os Conselhos como órgãos de poder coletivo (naqueles dias insurrecionais, eram os "Conselhos de Cidadãos", também chamados "Comitês de Salvação Pública", que, eleitos democraticamente, controlavam desde a distribuição das armas e da alimentação à organização do trânsito; ver em contraacorrente nº 3, maio/97). Nesses casos, os limites do Estado nacional em atender às reivindicações dos trabalhadores significaram a "queima" de uma série de "mediações" do desenvolvimento da luta de classes, aportando, quase imediatamente, na sua forma mais desenvolvida: a insurreição de massas.

Em outras regiões e países,  essa "queima" de "mediações" se dá nas lutas de setores do proletariado cuja marginalização efetiva, no plano dos "direitos civis" e das condições de vida, não encontra na ordem estabelecida nenhum canal de resolução de suas demandas. Assim são os casos da experiência insurrecional nos EUA em abril-maio de 92, cujo epicentro foi Los Angeles, bem como os movimentos violentos dos migrantes na Europa, dos favelados no Rio de Janeiro ou dos camelôs em São Paulo. O levante de Los Angeles trouxe características importantes e que foram encobertas pela "cobertura jornalística": na verdade, não foi uma "rebelião negra", mas antes um levante proletário multi-racial. Basta saber que o maior número de detidos foi de hispânicos e que, dentre os brancos, cerca de mil foram detidos, tendo contado ainda com forte participação de sul-coreanos. E chamou a atenção também a grande participação das mulheres (algumas semanas após a realização, em Washington, da maior manifestação de mulheres da história dos EUA "pelo direito à reprodução"). A denominação de "rebelião negra", por parte dos mass media, cumpriu na verdade uma função repressiva: buscava-se, com este expediente, manipular com o racismo e isolar o movimento rebelde, facilitando a ação da polícia e, mais tarde, dos fuzileiros navais.

Um aspecto fundamental desses movimentos, no seu conjunto, é o fato de que eles apontam formas extremadas de luta a diversos setores sociais cuja característica comum - a "exclusão" ou "marginalização" - diz respeito a uma parcela cada vez maior do proletariado em todo o mundo. São setores da classe cujas formas de luta não são - e nem podem ser - as "tradicionais"; mais ainda, formas de luta que, enquanto negação às formas subordinadas de "integração" na ordem, não podem ser senão extremadas.

Formas não tradicionais de resistência são também as inúmeras manifestações espontâneas dos setores juvenis da classe à marginalização, à repressão policial, à alienação cultural, ao clima opressivo das grandes cidades, com suas avenidas repressivas e sua arquitetura desumanizada, e ao despotismo do mercado cuja ideologia consumista afronta agressivamente as suas condições miseráveis de vida. Assim, ao lado da - sem dúvida - hegemônica "integração" através da cultura mercantilizada de massas, é perceptível a busca de resistência através das numerosas experiências de grupos culturais e edições de zines; através das pixações que, principalmente desde o início da década, buscam "melar" a urbanização modernizadora do capitalismo e romper com o anonimato e a desindividuação próprios da "massificação"; os vandalismos que, quebrando as máquinas do consumo, os telefones públicos, ou "estragando" festas oficiais da indústria de lazer com "brigas de turmas", respondem negativamente ao chamado da obediência e da uniformização. Em última instância, busca-se "peitar" a mercadoria e sua tirania sobre o conjunto da vida cotidiana, ainda que de forma às vezes mal canalizada (como o vandalismo). São formas, todas elas, de desobediência, de insolência, de busca de uma outra vida, ainda que - quase sempre - não possuam clareza sobre as causas de suas inquietações e, portanto, sobre os fins que corresponderiam a uma superação positiva de suas atuais condições de vida. Mas o mesmo podemos dizer em relação às experiências das greves e jornadas internacionais, as insurreições nacionais e setoriais da classe.

Segundo pensamos, todas essas formas de luta apontam uma tendência da luta de classes, tendência que, se desenvolvida, pode fazê-las aportar num novo e radical movimento de massas. As demandas que lhes impulsionam não são "integráveis": são, ao contrário, expressões das atuais estrutura e dinâmica do capitalismo contemporâneo. Mais ainda: a resolução dessas demandas ultrapassa as possibilidades do atual capitalismo e, portanto, de todos os projetos alternativos de "política econômica" da velha esquerda. Essas formas de luta representam uma crítica prática das formas que assumiram, atualmente, as relações sociais capitalistas. São uma crítica prática, em atos, da economia política. Como uma "crítica prática da economia política"? Essa é, sem dúvida, uma pergunta legítima para quem compreende a "economia política" apenas no sentido teórico, como "ciência econômica", e não também, e principalmente, como as próprias relações sociais capitalistas; e, portanto, compreende a sua crítica como "crítica" ideológica. Para Marx, no entanto, tratava-se, antes de tudo, de fazer a crítica das próprias relações sociais burguesas e, em conseqüência, das formas de consciência cotidianas e teóricas que lhe expressavam positivamente, acriticamente (veja-se o subtítulo de O capital).

Neste sentido, as lutas práticas contra as formas burguesas de relações sociais e de consciência não são senão a crítica prática da economia política. Particularmente nas atuais características do capitalismo, em que o domínio do capital e de suas alienações se estendeu da esfera do trabalho ao conjunto das experiências humanas - assumindo o controle de toda a sua vida cotidiana, realizando, assim, a completa "economização" da vida - a resistência ao domínio do capital assume diversas formas. Da luta "econômica" e "salarial", cada vez mais limitada, à luta contra a destruição capitalista da natureza; da luta contra a massificação e a desindividuação à luta contra a repressão policial (que, para as camadas baixas do proletariado, não é quase nunca uma "repressão política", mas uma cotidiana repressão disciplinadora); da luta contra a guerra à luta pelo direito a morar, a andar e amar livremente: tais são formas, as mais diversas, nas quais se manifestam espontaneamente a crítica prática da atual dinâmica do capitalismo.

A diversidade de formas e motivos dessas contestações parciais demonstram que é o capitalismo contemporâneo mesmo, em sua totalidade, que - embora por meios parciais - está sendo contestado. E que o desenvolvimento dessas lutas não pode ter como alvo senão a contestação total do sistema. São os sinais dessa contestação total que ora se apresentam aos nossos olhos. Com isto não estamos falando de uma profecia que anuncia o fim irremediável do mundo. Mas da reafirmação efetiva de uma potencialidade revolucionária em nosso tempo, cujas demonstrações parciais e espontâneas devem, nos próximos anos, continuar a se manifestar.

O desenvolvimento dessas lutas, no sentido de constituição de um amplo e consciente movimento de massas anticapitalista, não pode, no entanto, acontecer apenas pela sua atual dinâmica espontânea. Não estamos aqui fazendo a crítica da espontaneidade: pelo contrário, sem ela não é possível nenhum movimento revolucionário. Particularmente no capitalismo contemporâneo, no qual a "administração do mundo" (administração da produção e do consumo, pelos monopólios mundiais) busca impor aos indivíduos a passividade, o disciplinamento e a obediência em todos os aspectos de sua vida cotidiana, a descoberta da espontaneidade é, em si mesma, uma experiência de transgressão. Mas trata-se de que a tomada de consciência acerca das atuais condições sob as quais vive e luta o proletariado e, portanto, as perspectivas concretas de superá-las é um componente imprescindível para o próprio desenvolvimento dessas lutas. A consciência de uma perspectiva revolucionária é o que pode dar unidade, fôlego, continuidade e sentido às formas imediatas e parciais de contestação.

A essa tomada de consciência é necessária, no entanto, a compreensão teórica: a explicitação programática das bases econômico-sociais da atual forma da vida e os meios de superá-las, os meios de mudar a vida; a demonstração de que esses meios já se encontram à mão e que para usá-los, basta ter consciência e vontade. Esta tarefa teórica de modo algum se confunde com a ideologia, isto é, com a oposição à realidade presente a partir de idéias pré-concebidas ou herdadas do passado; mas é a tarefa de compreensão da própria realidade atual, suas contradições e a experiência real das classes em luta. Deste modo, se a tomada de consciência teórica é necessária para o desenvolvimento revolucionário das atuais lutas, não se trata da elaboração a priori de uma teoria crítica que irá buscar seus futuros protagonistas práticos, mas sim a elaboração teórica do que já está sendo realizado, das críticas práticas que, em sua parcialidade, realizam a negação parcial do mundo presente. E é a tomada da consciência teórica, programática, enquanto uma compreensão crítica unitária e de totalidade da realidade, que poderá unificar e desenvolver as atuais lutas na perspectiva de uma negação de totalidade.

A elaboração da teoria revolucionária do presente - na medida em que é a consciência unitária e de totalidade da própria experiência vivida - de modo algum se separa de sua comunicação à classe (que não pode se dar senão na participação da própria crítica prática). E é essa comunicação efetiva, no fluxo da própria vida, que poderá realizar a tarefa que nos cabe: impulsionar o desenvolvimento das atuais formas de contestação parciais em uma contestação total do sistema. Essa tarefa, para cuja consecução o contraacorrente pretende contribuir, só pode ser realizada pela soma de atividades teóricas e práticas de todo um conjunto de indivíduos, agrupamentos, tendências e correntes em nível mundial. Afinal, não é possível falar em contestação total do sistema - nos atuais níveis de mundialização das forças produtivas, da produção e das trocas - que não seja uma contestação internacional e da vida cotidiana em seu conjunto, a partir - como já demonstram as novas tendências da luta de classes - dos próprios países capitalistas centrais.

Nossa tarefa, de modo algum, é "jogar garrafas ao mar", mas "jogar óleo no fogo". Ou, se se quiser, semear ventos numa Terra pronta para tempestades.

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